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sábado, 24 de janeiro de 2015

«O Quarto Alugado», de Ricardo Belo de Morais

Editora: Verso de Kapa
Data de Publicação: 28/11/2014
N.º de Páginas: 192

Sobre a obra e a pessoa de Fernando Pessoa (1888-1935) já se escreveu até hoje mais de 5.000 livros. A primeira e a mais recente biografia sobre o poeta português mais universal de todos, Vida e Obra de Fernando Pessoa (João Gaspar Simões, 1950) e Fernando Pessoa: uma quase-autobiografia (José Paulo Cavalcanti Filho, 2012), são apenas duas obras que encontram-se entre os extremos destas centenas de publicações dedicadas a esclarecer, muitas vezes a confundir, quem foi e qual o legado deixado pelo homem nascido a 13 de Junho de 1888. Em Novembro de 2014 veio juntar-se a este rol de trabalhos mais dois romances biográficos, um deles com o título O Quarto Alugado, de que este texto vem falar.
Tendo como narrador o fictício Vicente Guedes, um «heterónimo mal-amanhado, um rascunho tosco do que viria a ser o Bernardo Soares», neste livro de Ricardo Belo de Morais, que actualmente exerce funções na Casa Fernando Pessoa, somos levados a percorrer e a conhecer, cronologicamente, a vida de Pessoa, todavia só a partir do fim da sua adolescência, quando regressa definitivamente de Durban para Lisboa — perdendo-se assim na narrativa 20 anos da sua vida, duas décadas que foram pródigas em acontecimentos traumáticos e que moldaram a sua índole.
Vicente Guedes, então com 84 anos, escreve estas memórias em 1974, sobre o seu amigo Pessoa, numa altura em que continuavam a investigar e a decifrar os milhares de papéis com os inéditos do autor de Mensagem (1934), muitos dos quais guardados na sua famosa arca de madeira, que o acompanhava fielmente para todos os quartos que alugou entre 1910 e 1920, em Lisboa (o primeiro foi no Largo do Carmo, o último na Rua Coelho da Rocha) (o título do livro estar no singular não se percebe, por terem sido inúmeros os quartos alugados…). Guedes, nas suas memórias, que o leitor vai acompanhando, evoca como e onde fez amizade com o jovem vindo da África do Sul, lembra episódios curiosos sobre os espaços mais frequentados pelo poeta, sobre as pessoas que privaram de perto com ele, sobre os principais jornais e revistas onde colaborou, sobre Pessoa o editor, o escritor, o crítico literário, o astrólogo, a criação dos vários heterónimos e outras polivalências e facetas onde ele era singular e sempre prodigioso. O narrador octogenário em muitas passagens do seu diário, que vai até 1935, não poupa críticas aos que se aproveitaram do nome e genialidade do amigo ao longo das últimas quatro dezenas de anos e que difundiram, através de publicações e outros meios, falhas, erros, equívocos e «efabulações» sobre a vida e obra de Fernando Pessoa. Este «pré-heterónimo», como é mencionado Vicente Guedes por Ricardo Belo de Morais em nota introdutória do livro, parece nutrir uma aversão ao “biógrafo oficial” de Pessoa, sendo ele o alvo da maioria das admoestações lançadas, muitas relacionadas com o que João Gaspar Simões escreveu na biografia já mencionada neste texto: «Bem sei que Fernando Pessoa era avesso a biografias (…) Mas não pode ser assim, com tanto ainda por revelar e já com tantas imprecisões e “buracos”» (p. 76)
O narrador de O Quarto Alugado habitua o leitor à [sua] não consensualidade em relacção aos factos tidos por muitos como verídicos, relacionados com o amigo. Nas memórias Guedes defende-o de tudo o que contra ele se disse e fez ou que serviu para lhe denegrir a imagem («Fernando Pessoa, um doente mental… Céus! Isso sim, seria loucura pensá-lo!!!» (p. 75); Pessoa não era alcoólico, nem viciado e só quem assim escreveu e pensa «não o conheceu a fundo ou não o leu com a alma» (p. 149); «Um dia destes, ainda vou ler por aí que o Fernando se drogava, por ter escrito sobre ópio, morfina, coca e cola. Santa paciência.» (p. 149). Guedes também faz passar a mensagem de que ele fora o único e verdadeiro amigo de Fernando Pessoa; muitos podem pensar que esse fora Mário de Sá-Carneiro, mas o narrador condena essa amizade por Mário fazer de Pessoa um «moço de fretes», «um criado», «amigo-da-onça». Muitas vezes, nestas frases de crítica que lemos no diário de Vicente Guedes somos levados a acreditar que existe alguma parcialidade e que essas frases são as do próprio autor, que as reproduz pela voz do narrador.
Após terminada a leitura desta biografia romanceada breve e detalhada e que por ser da autoria de uma pessoa que ao longo do livro, indirectamente, revela ser grande apaixonada pelo mundo pessoano, que desde 2013 está atrás do blogue e página de Facebook ‘O Meu Pessoa’ há a concluir que esta obra publicada pela Verso de Kapa contém algumas curiosidades sobre a vida do biografado, que apenas um investigador/estudioso pessoano será capaz de conhecer. O autor escreve com manejo, com segurança factual e frisa, através da voz do narrador, que nem tudo o que se propagou ao longos dos anos sobre o autor que criou muitos eus é verdade, e esse talvez tenha sido um dos seus objectivos para escrever este livro, consciencializar mentalidades. Ricardo Belo de Morais revela ser um escritor perfeccionista não apenas a nível factual mas também pela linguagem meticulosa ultilizada e por esta sua obra não apresentar uma única falha a nível de sintaxe, morfologia, nem de revisão.
Por não estar escrito na primeira pessoa (a do biografado), por do livro constar quase nenhumas citações de Fernando Pessoa e nenhuma nota de rodapé a justificar algumas das fontes mencionadas, O Quarto Alugado interage pouco com o leitor, muito à conta do narrador que reflete pouca empatia. É, contudo, uma leitura que acrescenta saber e só por isso merece ser adquirida.

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