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terça-feira, 29 de setembro de 2020

Entrevista a Tânia Ganho

Todos os anos centenas de mulheres e homens sofrem em silêncio, ao não denunciarem a violência doméstica de que são alvo, seja ela física, psicológica ou sexual.

No seu mais recente livro, a escritora e tradutora literária Tânia Ganho apresenta-nos um romance que é um grito de alerta sobre a violência doméstica em Portugal.

Publicado há dois meses pela Casa das Letras, uma chancela da LeYa, Apneia, já na 2.ª edição, serviu de pretexto para uma conversa com a autora, que vive actualmente em Lisboa.


Miguel Pestana | Fotos: DR

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Apneia marca o seu regresso à escrita volvidos oito anos. Por algum motivo específico?

Em Portugal, existem pouquíssimos apoios à criação literária, portanto a maioria dos escritores não pode dedicar-se a tempo inteiro à escrita e eu não sou excepção. Trabalho como tradutora e só consigo escrever à noite, o que significa que demoro muito tempo a terminar um manuscrito. No caso de Apneia, ainda mais, porque o tema é tão duro e complexo, que exigiu um longo período de maturação, para eu encontrar o tom certo, de modo a não ser sensacionalista ou piegas.

O romance gira em torno de um tema actual – embora não seja novo – que faz manchetes na comunicação social quase diariamente: a violência doméstica. Porque escolheu abordar este assunto tão sensível e complexo?

James Baldwin escreveu que “um escritor é um perturbador da paz” e eu sinto uma necessidade cada vez maior de abordar na minha escrita questões que considero muito graves na nossa sociedade. A violência doméstica mata dezenas de mulheres todos os anos, em Portugal, e deixa outras tantas crianças órfãs. A Justiça continua a não valorizar o sofrimento das vítimas, sobretudo das crianças, e a não saber protegê-las. Quis escrever um livro que mostrasse o que é a violência doméstica e, acima de tudo, a violência psicológica, e as marcas que deixa nas vítimas, marcas que não se vêem, mas existem e são terríveis.

O casal retratado na história pertence à classe social média-alta, ambos instruídos. A Tânia quis realçar que este flagelo que abala a sociedade – a cada um de nós – não escolhe formação, religião, cultura, raça…

Escolhi um casal de classe social média-alta precisamente para acabar com a ideia errada de que a violência doméstica só atinge os mais desfavorecidos ou as pessoas com menos estudos e menos posses. E a violência psicológica, que é aquela que eu abordo no livro, pode atingir qualquer pessoa, não só no contexto de intimidade, mas também no local de trabalho.

Nesse ambiente tóxico, tudo se adensa com a existência de um filho, que testemunha diariamente as atitudes transgressoras por parte do progenitor masculino. O divórcio litigioso por que passam é, assim, vivenciado também pelo filho, gerando nele efeitos negativos, como pesadelos e ansiedade. Por que razão as crianças não são mais salvaguardadas nestes processos?

As crianças não são mais salvaguardadas, em primeiro lugar, porque um ou os dois progenitores as usam como arma de arremesso para atingir o outro. Em segundo lugar, porque nos tribunais de família ainda há muito a noção de que as crianças se adaptam a tudo e com o tempo esquecem as coisas más, o que não é verdade. Uma criança que ouve constantemente o pai ou a mãe a dizer mal dooutro progenitor vive num ambiente violento, mas muitos magistrados não dão adevida importância a isso e julgam que o importante é a criança ter um pai e uma mãe, mesmo que esse pai ou essa mãe sejam tóxicos. E, acima de tudo, faltam psicólogos nos tribunais e, em especial, psicólogos com formação específica nesta área, que saibam interpretar correctamente o discurso dos progenitores e o das crianças, e auxiliem os magistrados a tomar decisões.

Esta criança é maltratada por um dos pais e, sem querer, maltrata o outro. Muito se fala sobre alienação parental, mas parece que pouco se tem feito nas instâncias de protecção de menores no nosso país. Esta inércia deve-se a quê, no seu entender?

Há uma grande celeuma em Portugal e noutros países, como o Brasil, em redor da alienação parental e a verdade é que, enquanto andamos às voltas com a teoria da alienação parental, infelizmente as crianças é que vão sofrendo as consequências de não haver um consenso. É um facto que há progenitores que fazem tudo para afastar – alienar – os filhos do outro progenitor. Alessandro, a personagem de Apneia, é um exemplo disso. Mas a chamada ‘síndrome de alienação parental’ foi inventada por um psiquiatra norte-americano cuja idoneidade já foi mais do que posta em causa, como descrevo no meu livro, e creio que temos mesmo de parar de falar em alienação parental e analisar cada caso por si só, sem teorias, sem dogmas e, acima de tudo, sem ideias pré-concebidas. Temos de nos focar nas crianças e no bem-estar das crianças e não ceder a teorias, lobbies e preconceitos. 

“Um processo de guarda nos tribunais portugueses é uma corrida de fundo”, podemos ler na página 313. Burocracia, falta de comunicação entre instituições que tratam dos casos, falta de sensibilidade por parte de alguns profissionais judiciais… O que falha para a pouca celeridade nestes processos que deviam ser prioritários?

Os tribunais têm falta de magistrados e psicólogos, os hospitais têm falta de pedopsiquiatras, as instituições são demasiado burocratizadas e a comunicação não flui entre elas, há muitos advogados que põem achas na fogueira e, em vez de ajudarem a atenuar o conflito parental, acirram-no e, mais importante, falta empatia na Justiça. A empatia devia ser ensinada nos bancos da escola.

A Tânia escreveu recentemente que a violência doméstica é uma “pandemia”. Na sua opinião, que medidas urgentes devem ser tomadas para reverter este “surto” que dura há décadas na sociedade portuguesa?

A curto prazo, há várias medidas que podem e devem ser imediatamente aplicadas: prisão preventiva para os agressores, em vez de medidas de coação ridículas como “proibição de contactar a vítima”; obrigar os agressores a sair de casa, em vez de serem as vítimas a ter de abandonar o lar e procurar uma casa-abrigo; penas de prisão efectiva e não suspensa, para os agressores perceberem que existe efectivamente um castigo para o crime de violência doméstica; acompanhamento psiquiátrico e psicológico disponível em todos os centros de saúde, porque há muitos agressores que sofrem de patologias que podem ser diagnosticadas pelos técnicos de saúde. A longo prazo, temos de educar as novas gerações para o respeito e a empatia, acabar de vez com a ideia absurda de que “ciúme é sinónimo de amor” e de que as pessoas matam por amor. As pessoas matam porque sofrem de patologias do foro psiquiátrico e não por amor.

Acha que a pandemia que assolou o nosso país e o mundo nos últimos meses, agudizou casos de violência doméstica pré-existentes?

Sem dúvida que agudizou. A pandemia criou muitos factores que potenciam a violência doméstica, como o isolamento social, o desemprego, o stresse. O confinamento trancou muitas vítimas em casa com os seus agressores, sem a possibilidade de saírem pelo menos para trabalhar.

Em Portugal, nestes processos, quando é necessário tomar uma decisão, as crianças são avaliadas por psicoterapeutas e pedopsiquiatras, que reportam aos magistrados e juízes os seus pareceres sobre o estado psicológico dos menores. Os pais não deveriam ser avaliados também por um técnico de saúde mental?

Deviam e, nalguns casos, são avaliados, mas nem sempre por técnicos com formação específica na área da violência doméstica. É preciso que os psicólogos tenham formação nesta área e os magistrados também, para saberem interpretar os relatórios que recebem. Um técnico pode fazer um relatório competentíssimo, mas se os magistrados não lhe derem a devida importância, o relatório não serve para nada. 

Há pais que são apenas progenitores. Só isso. Porque é que a sociedade insiste em pintar um quadro bonito, em que o pai e a mãe têm que estar presente na vida das crianças?

As crianças precisam de um pai e de uma mãe e não de progenitores tóxicos ou negligentes. Uma criança é mais feliz se viver só com um dos progenitores mas em paz, do que se viver com os dois num ambiente de violência e agressividade. A sociedade continua a perpetuar o mito da família feliz, mas há muitas famílias que são um verdadeiro inferno. Basta pensarmos que uma grande percentagem dos crimes de abuso sexual de menores são intrafamiliares, ou seja, são cometidos por familiares próximos das vítimas, muitas vezes o pai ou o padrasto, o tio ou o avô.


No livro, descreve os diversos danos psíquicos gravíssimos que sofrem as vítimas de violência psicológica. Algumas passagens que escreveu são inquietantes para quem lê. Um escritor, tal como um psicoterapeuta, tem que se distanciar, se resguardar, quando aborda estes temas?

É difícil resguardarmo-nos quando escrevemos sobre temas tão duros como a violência psicológica e creio que é impossível distanciarmo-nos, mas tentei ser objectiva – como um psicoterapeuta, sim –, procurei escrever um romance que contasse o sofrimento por dentro, mas sem ser melodramático, nem vingativo. Procurei não o distanciamento, mas a lucidez. Não é uma história de vitimização e ódio, é uma história de redenção e amor.

 

É notório que fez muito trabalho de pesquisa para escrever este livro. Pode referir algumas entidades e instituições a quem recorreu, que fundamentaram o teor deste seu trabalho literário?

Conversei muito com advogados, com funcionários do Ministério Público e da Segurança Social, com alguns polícias e investigadores da Polícia Judiciária. Li muitos requerimentos e acórdãos, durante anos “coleccionei” os artigos que saíam na imprensa sobre raptos parentais, guardas partilhadas, violência doméstica. Li uma bibliografia extensa, da qual gostaria de destacar os textos da autoria da juíza Clara Sottomayor, os livros das psicólogas forenses Rute Agulhas e Alexandra Anciães, o livro O Tribunal é o Réu do psiquiatra Daniel Sampaio e a tese Abusadores Sexuais do psicólogo forense Mauro Paulino. Por último, fiz um curso de especialização em Ciências Forenses, Investigação Criminal e Comportamentos Desviantes, que me deu muitas pistas sobre perfis criminais e perícias forenses.

Vários são os excertos de poemas de Anne Sexton que acompanham a narrativa. Para quem não leu Apneia, pode descrever que género de poesia é a dela?

A poesia de Anne Sexton é intimista, confessional, uma poesia que aborda sem pudor temas da vida íntima da autora e questões da esfera doméstica. Sexton foi uma mulher conturbada e fascinante, e a poesia dela aborda muitos dos temas de Apneia, como a doença mental e o divórcio.

A ilha da Madeira e a de Porto Santo já foram retratadas em contos e romances que já escreveu. Qual a sua ligação com as “nossas” ilhas?

A minha família paterna é madeirense e passei muitos Verões na Madeira, Verões esses que me deixaram recordações belíssimas. Os passeios pela serra, as caminhadas ao longo das levadas, os banhos no Clube Naval, acampar no Paul da Serra, ver as estrelas cadentes no céu sem fim do Pico do Areeiro, o arroz de lapas de Porto Moniz, o bolo do caco e os filetes de peixe-espada com que me deliciava todos os anos, as estradas às curvas com ribanceiras vertiginosas... Aprendi a nadar no mar da Madeira e a minha primeira ida a uma discoteca foi às Vespas. São recordações preciosas, que me acompanharão para o resto da vida. Quero voltar a escrever sobre a Madeira, mas mostrando precisamente este amor que sinto.

Em Apneia, a protagonista busca um refúgio, um escape, numa outra ilha portuguesa. Que significado têm as ilhas nas histórias que cria?

Talvez por essas recordações da Madeira que me ficaram da infância, tenho um fascínio enorme por ilhas. Parece que o tempo é mais lento e saboreado nas ilhas, vive-se mais devagar, mais em sintonia com a natureza. A minha família costumava ir ‘ao banho’ no Clube Naval à hora do almoço, na pausa do trabalho. Quem é que no Continente pode dar-se a esse luxo? As pessoas saem de casa de manhã e só voltam ao cair da noite. Só mesmo quem vive à beirinha da praia consegue ter esse prazer.

Nenhum leitor sai incólume após virar a página 696 do livro. Esta era a sua intenção?

Era. Quero que os leitores cheguem ao fim e fiquem a pensar em Adriana e Edoardo, na justiça, na violência, na crueldade. E na capacidade de as vítimas superarem os traumas e terem vidas “normais”. Há uma mensagem de esperança em Apneia. 

A feitura de ‘Apneia’ levou quanto tempo?

Demorei cerca de sete anos a fazer pesquisa e a escrever. A fase de revisão também foi muito longa, porque queria que não houvesse falhas nos trechos que se referem especificamente a questões do foro da Psiquiatria e do Direito.

Até agora, que feedback tem recebido por parte dos leitores que já leram Apneia?

A reacção dos leitores tem sido comovente para mim. Recebo muitas mensagens nas redes sociais de pessoas de diferentes idades que leram Apneia em três, quatro dias, e que me escrevem para dizer que o livro as tocou. Fico feliz por ter esse contacto tão directo com os leitores, o que era impensável antes da existência das redes sociais. 

A Tânia Ganho é um nome bem conhecido na Tradução Literária em Portugal. Que autor ou livro gostou mais de traduzir?

Tenho vários preferidos (e por motivos diversos): A Vida em Surdina de David Lodge, A Acidental de Ali Smith, Recordações do Futuro de Siri Hustvedt, Um Gentleman em Moscovo de Amor Towles, são alguns deles.

No seu dia-a-dia, como concilia a escrita com a tradução?

Não é fácil conciliar as duas actividades. Geralmente traduzo de dia e escrevo à noite e só quando já tenho uma grande parte do romance escrito é que tiro um ou dois meses só para escrever e rever o texto.

O que faz com mais agrado: ler, escrever ou traduzir?

Ler. É a ler que desligo de tudo e me abstraio de todas as preocupações. Traduzir é um prazer, mas é uma actividade muito exigente e fico sempre receosa de ter interpretado mal uma frase ou falhado na escolha de uma palavra. Escrever é uma necessidade, escrevo porque, se não o fizer, as palavras acumulam-se e não me deixam descansar. 

(Entrevista - versão alargada - publicada originalmente no Diário de Notícias da Madeira a 28/09/2020)

 

Entrevista a Tânia Ganho, publicada aqui no blogue em 2012, aquando do lançamento do livro A Mulher-Casa.

1 comentário:

  1. Um tema muito atual e relevante. Fantástica entrevista! Muitas pessoas a deveriam ler, para desmistificar certas ideias obsoletas.

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