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terça-feira, 23 de maio de 2023

«Dor Fantasma», de Rafael Gallo

Editora: Porto Editora
Data de publicação: 23-03-2023
N.º de páginas: 280

«As mãos pousam ao piano. Na brancura do teclado, os dedos se deixam deslizar, potentes cavalos-marinhos de volta à água aonde pertencem.» Este é o incipit do romance que venceu a mais recente edição do Prémio José Saramago, da autoria do escritor paulista Rafael Gallo (n. 1981).
O protagonista desta ficção é Rômulo Castelo, um professor de piano numa universidade brasileira, casado com Marisa e pai do pequeno Franz.
Todos os dias, este homem disciplinado e perfecionista (características que herdou do seu pai, que era maestro) entra na sua sala de estudos, um compartimento estanque e insonoro, e ensaia o Rondeau Fantastique, aquela que é considerada a magnum opus de Liszt. Esta é uma das composições de piano mais tecnicamente desafiadoras de sempre. Rômulo é fascinado por essa sinfonia desde a infância, tendo, com o passar dos anos de intenso aprimoramento, se tornado um dos maiores intérpretes desse pianista que viveu no século XIX.
Para este monomaníaco, «é preciso tornar-se um só com o instrumento», sem distrações, sem nunca desleixar a concisão, a exactidão, o primor. Por conseguinte, este homem é insensível e intransigente para com a família, colegas e alunos – e para o resto do mundo em geral –, porque ele só visualiza a concretização do seu sonho: inscrever a sua marca no mundo, com a sua performance arrebatadora da peça intocável, ao longo da turné já agendada pela Europa, obtendo o respeito e louvor de todos os entendidos na matéria.
Mas um inesperado incidente vai fazê-lo mudar «aquela parte de si moldada por anos a fio à perfeição».
Dor Fantasma é um romance sobre a ambição e obsessão de um pianista, que não olha a meios para atingir um fim. Ele consegue seguir o andamento das batidas de um metrónomo, mas é incapaz de ouvir os batimentos do seu próprio coração.
Através de um personagem central irascível e tirano, que os leitores vão gostar de odiar e/ou sentir piedade, Rafael Gallo criou um romance pujante, que, com acutilância, critica o mundo actual, que apela, nos domínios pessoal e profissional, à perfeição e à competitividade, que são vistas como mais-valias. Um livro que faz-nos (re)pensar.

Excerto
«Muita dor, prolongada por onde ele deixou de existir. A dor do imenso Nada. Morrer é isso? Sim, também isso é morrer. Não a negação definitiva da vida, mas a afirmação totalizante da perda (…) Ser um só com a dor, tornar-se o fantasma.»

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