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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

«Seios e Óvulos», de Mieko Kawakami

Editora: Casa das Letras
Data de publicação: 22-08-2023
N.º de páginas: 504

A ficção japonesa traduzida ganhou uma nova voz de relevo. A escritora Mieko Kawakami causou celeuma entre os conservadores e o establishment literário no Japão quando o seu segundo romance, Chichi to Ran, foi publicado em 2008. O livro, que explora a feminilidade, a repulsa corporal e a maternidade, acabou por ser galardoado com o mais prestigiado prémio literário do seu país. O livro foi completamente reescrito e aumentado (a versão inicial tinha 138 páginas) em 2019, supostamente, com o intuito de ser bem "acolhido" pelos editores internacionais. Assim foi: uma tradução para o inglês de Natsu Monogatari foi publicada em 2020, sob o título Breasts and Eggs. A partir dessa tradução inglesa, chegou até aos leitores portugueses Seios e Óvulos, um trabalho de tradução assinado por Renato Carreira.
Esta obra, desta autora literariamente “apadrinhada” por Haruki Murakami (a autora o entrevistou ao longo de dois anos, encontros que resultaram num livro publicado em 2017), já foi traduzida para cerca de três dezenas de idiomas, tendo-se tornado um sucesso de vendas internacional.
Esta história está dividida em duas partes. A primeira, passa-se em 2008 e inicia-se quando Natsuko Natsume, de 30 anos, que tem a pretensão em vir a ser escritora, recebe na sua casa, em Tóquio, a visita da irmã e sobrinha. Enquanto confraternizam e relembram as dificuldades por que passaram — foram criadas pela avó, após fugirem de um pai agressivo —: «Não tínhamos dinheiro. Não tínhamos nada. Mas tínhamo-nos umas às outras. Tínhamos as nossas palavras e todos os sentimentos que nunca sequer tínhamos pensado traduzir em palavras.»
Makiko trabalha muito num bar em Osaka, passa dificuldades financeiras, mas mesmo assim, a sua visita à irmã mais nova não foi mais do que um pretexto para ir a uma consulta para pôr implantes mamários — a sua obsessão é tornar os seus seios maiores.
Midoriko, a sobrinha da protagonista, é uma jovem a entrar na puberdade, que está a descobrir a sua identidade sexual, não consentindo as transformações inerentes ao processo de vir a se tornar uma mulher. Uma entrada do seu diário diz: «Depois de ter o período, o corpo consegue fertilizar espermatozoides. E isso significa que podemos engravidar. (…) Fico um bocado deprimida só a pensar nisso. Nunca o farei. Nunca terei filhos. Nunca.»
Enquanto está escrevendo o seu primeiro livro, Natsuko vai trabalhando em bares e livrarias, onde faz amizades. Pertencer a esse grupo de amigas, um dia deixou de fazer sentido à narradora (sentia-se posta de parte), pois elas abordavam essencialmente assuntos relacionados com os seus namoros, casamentos e filhos.
Na segunda e mais longa parte da história, oito anos depois, o leitor fica a saber que Natsuko tinha tido um único namorado, mas «o sexo com ele não era uma coisa que precisasse… não era uma coisa que quisesse», «nunca era agradável, confortante ou satisfatório», «sempre que ficávamos nus e o deixava começar, o mundo escurecia.»
Nesta fase da sua vida, o seu primeiro livro já tinha sido publicado e tinha sido um sucesso, ela era cronista em algumas revistas e conseguia viver apenas da escrita. Mas alguma coisa fazia falta à sua existência. Estava solteira e desesperada para ter um filho: «Não tinha um companheiro e não procurava um. Conseguiria mesmo ter um filho se não conseguia suportar o sexo?».
Seios e Óvulos é um romance protagonizado por uma mulher e povoado quase por completo por figuras femininas pertencentes a gerações diferentes. Baseando-se na sua própria experiência como mulher solteira e escritora, Kawakami retrata a solidão de mulheres e homens asiáticos, que percorrem uma longa batalha burocrática para os seus direitos poderem ganharem voz. Questões éticas e dilemas da sociedade moderna são levantadas.
Além de assuntos relacionados com o universo feminino (Kawakami escreve com precisão sobre o corpo feminino: os seus desconfortos, seus desejos, seus cheiros e secreções, etc.), a autora, nascida em 1976, aborda neste romance temas sensíveis como a morte, o cancro, a violência doméstica e sexual, a assexualidade, os direitos das mulheres, infertilidade, entre outros.
Embora algumas passagens da narrativa pudessem ter sido purgadas (porque não acrescentam nada à história), o estilo desta ex-cantora permeia-se pela ironia e humor ácido. É um romance que se lê intensamente, mas que não deixa de se tornar estranho e enfadonho em certos momentos.
As traduções de traduções são sempre alvo de ter falhas, principalmente quando a língua original é o japonês. Esta tradução da edição inglesa é um exemplo, mas, mais evidente é a péssima revisão assinada por Isabel Garcia (mais de uma dezena de gralhas foram anotadas).
Como curiosidade, salientar que a revista Granta portuguesa, na edição de Maio de 2017, incluiu um texto de Mieko Kawakami, intitulado Sobre ela e as memórias que lhe pertence (About Her and the Memories that Belong to Her).

Excertos
«Às vezes, pergunto-me se sou mesmo uma mulher (…). Sei que tenho o corpo de mulher. Tenho seios, como uma mulher, tenho o período como uma mulher. Quando estava com esse homem, havia momentos em que lhe queria tocar e estar com ele. Mas o sexo… abrir as pernas e tê-lo dentro de mim… era horrível.»

«Toda a gente. Acham que os bebés são adoráveis. Querem experimentar ser pais. Querem tirar o máximo partido do seu corpo. Querem dar continuidade aos genes dos seus companheiros. Ou talvez se sintam sós e queiram alguém que cuide deles quando forem velhos (…) só pensam em si próprios. Nunca pensam na criança que vai nascer. Ninguém quer saber como a criança se vai sentir.»

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