Edição comemorativa dos 30 anos de lançamento em Portugal, pelas Publicações Dom Quixote, de Demian, um dos romances mais icónicos de Hermann Hesse (1877-1962). 2019 é simultaneamente o ano em que se assinala 100 anos desde que esta obra foi publicada pela primeira vez na Alemanha. Curiosamente, só anos mais tarde é que Hesse revelou ser ele o autor da obra, visto que a mesma foi assinada sob o pseudónimo de Emil Sinclair, o nome do protagonista e narrador da história.
Desde a infância até ao início da vida adulta é apresentado ao leitor o processo incessante de busca de respostas, de um jovem atormentado pela falta de explicação às suas questões sobre tudo quanto existe.
Sinclair nasce numa família extremamente religiosa e com ideologias sobre o mundo muito «límpidas». Desde cedo mostra-se incapaz de perceber e coadunar com esse pensamento unicamente benfazejo sobre as pessoas e suas acções. «No meio da paz e da ordem da nossa casa, eu vivia como um fantasma, assustado e torturado.»
O seu ensejo de realização interior e pelo autoconhecimento, e de vivenciar os lados opostos e duais (o bem e o mal), é começado a ser trilhado, assim que ele se vê livre das perseguições e ameaças (100 anos depois de escrito, a palavra mais apropriada é bullying) de Franz Kromer, um perverso e maléfico rapaz, um pouco mais velho que Sinclair: «o demónio tinha tomado a minha mão e eu era, agora, perseguido pelo inimigo».
A agonia e desespero deste jovem apenas termina quando conhece Max Demian, um novo colega de classe, perspicaz, inteligente, empático, de olhar «pétreo», que tinha o dom de ler o pensamento dos outros através da observação: «Observa bem uma pessoa e passarás a conhecer a sua personalidade melhor do que ela própria.» Assim nasce uma amizade entre estas duas almas novas solitárias, sedentas de respostas sobre assuntos como a fé, a moral e a sexualidade.
Mesmo quando Sinclair ingressa noutra escola e pela primeira vez sai de casa, a influência deste seu grande amigo - Demian era uma espécie de mensageiro de aguçada maturidade, que instigava-o a pensar por moto próprio – não deixa de ser sentida nos anos seguintes, quando o protagonista encalça por uma fase boémia, mas também de profunda alienação: «O meu objectivo não era já a libertinagem, mas a pureza, não o sucesso e sim a beleza e a espiritualidade».
Outro amigo, o esotérico e organista Pistórius, aparecerá também no caminho de Emil Sinclair, para influir os seus pensamentos filosóficos e gnósticos (sobre Abraxas) na curta e simultaneamente densa jornada de descoberta interior do narrador, que «não fora fadado para respirar na abundância e no conforto, necessitava dos tormentos». Com 18 anos «era um jovem diferente do comum, precocemente amadurecido».
Com uma excelente tradução de Isabel de Almeida e Sousa (introduz várias notas de rodapé muito pertinentes e de valiosa ajuda ao leitor), Demian é uma obra de carácter faustiano, onde o escritor alemão, através de uma escrita rica e elíptica, foca-se no tema da busca pelo autoconhecimento dentro dos limites impostos pela família, religião e sociedade em geral. É um romance onde estão tácitos os pensamentos de Nietzsche e Carl Jung, de quem o autor de Narciso e Goldmund era partidário.
A existência do bem e do mal, e de que todo o ser humano tem imbuídas em suas veias as características de ambos estes polos, é o grande tema e reflexão deste belo romance, que reúne algumas frases bem ilustrativas da profundidade do pensamento do seu autor.
Como em outros livros do vencedor do Nobel de Literatura de 1946, em Demian o protagonista precisa sair do seu ninho, da sua ilha, para ver a ilha: «não nos vemos se não saímos de nós.» (José Saramago)
Excertos
«As pessoas decididas e de carácter surgem, aos olhos das outras, como assustadoras.» (p. 37)
«Não há necessidade de ter receio de ninguém e, se o temos, é porque alguém conseguiu alcançar poder sobre nós.» (p. 45)
«… dentro de nós, há um ser que tudo sabe, tudo quer, tudo realiza melhor do que nós próprios» (p. 96)
«Há que não recear, nada considerar proibido de entre aquilo por que a alma apela.» (p. 125)
«Ao odiar uma pessoa, detestamos, na sua imagem, algo oculto em nós próprios. O que em nós se não encontra, não nos incomoda.» (p. 125)