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quarta-feira, 8 de novembro de 2023

«Jésus-la-Caille», de Francis Carco, entre as novidades da Sistema Solar

Eis algumas das mais recentes publicações lançadas pela Sistema Solar. Todas estas obras de Literatura, de autores nascidos no séc. XIX, foram traduzidas para para o nosso idioma por Aníbal Fernandes.


O controverso aparecimento de Carco como romancista. A homossexualidade masculina com uma audácia então desconhecida na literatura francesa. E o nome Jesus a baptizar… inocentemente… um gigolô.


Em 1914, o ano em que foi publicado pela primeira vez Jésus-la-Caille, Francis Carco só tinha como antecedentes literários uns quantos versos a que o autor chamava canções agridoces e podiam ser lidos em edições pobres, com reduzida circulação nas livrarias. Viviam-se dias de guerra, mas com uma presença editorial marcada por alguns sobressaltos. Poucos meses antes, os leitores franceses tinham sido surpreendidos com os versos de Alcools de Apollinaire e os de La Prose du Transsibérien de Blaise Cendrars; Barrès publicava o seu melhor livro, La Colline inspirée, e Martin du Gard provocava amenamente os católicos com Jean Barois; Proust dava a conhecer uma primeira amostra do seu enorme romance, e chamava-lhe Du Côté de chez Swann; Alain-Fournier, a poucos meses da bala alemã que o ia matar, mostrava-se com todas as seduções do seu Le Grand Meaulnes; Gide supunha-se impertinente com Les Caves du Vatican e Raymond Roussel fora de todas as regras com Locus Solus; o Jean-Christophe de Romain Rolland recebia o Grande Prémio da Academia Francesa.

No meio desta efervescente convivência criativa Jésus-la-Caille, a primeira obra em prosa de Francis Carco (que viria a ter a sua versão definitiva em 1917), levantava hesitações conservadoras aos editores de Paris. Era a primeira vez que a homossexualidade masculina da prostituição de engate surgia com tanta audácia num romance da literatura francesa. Ainda por cima, com um título que se atrevia a dar o nome de Jésus a um gigolô e a acrescentar-lhe na alcunha um La Caille, que embora significasse na linguagem vulgar uma inocente codorniz, tinha no calão da época o sentido de «a trampa». O som destas palavras, que num inevitável desvio de significação poderia sugerir Jesus a Trampa, era um mau gosto que roçava o sacrilégio. (Registe-se que muitos anos depois, em 1955, o banal filme de André Pergament baseado neste romance achou que devia adoçar o seu título para um bem comportado M’sieur La Caille). [Aníbal Fernandes]
Dois pontos altos nas novelas de Mérimée. «Carmen», a oportunidade de uma dissertação sobre o mundo dos ciganos ibéricos. «Lokis», um fantástico de escabroso subentendido que recupera e transtorna uma lenda da tradição eslava.

Um livro onde Carmen e Lokis surgem reunidos pode não ser mais do que a associação de dois pontos altos na série de contos e curtas novelas que se fizeram o essencial na obra literária de Prosper Mérimée; mas reúne, além disto, duas histórias-pretexto; ou seja, em Carmen a oportunidade de uma dissertação sobre o mundo e os hábitos dos ciganos ibéricos; em Lokis um fantástico de escabroso subentendido que recupera e transtorna uma lenda da tradição eslava, aqui deslocada até à Lituânia como pretexto para uma reflexão sobre a estranha língua samogítica que Mérimée designa no texto com a forma popular jmud.
Mérimée nasceu em Paris no mês de Setembro do ano 1803; o seu pai, pintor de quadros banais, tinha o curioso nome de Léonor Mérimée; a sua mãe anglófila, culta e autoritária, dominou o filho com uma possessiva relação edipiana e durante toda a vida incitou-o à prudência de um celibato que ele temperou com relações cuidadosamente desviadas da vigilância materna. […]
Mérimée, um dos românticos mais corajosos e marcantes da sua geração, teve de J. Barbey d’Aurevilly esta curiosa frase: «Talento brilhante e negro como a Espanha que ele pintou, e com um refinamento que chega à malvadez. Há Goya em Mérimée.» [Aníbal Fernandes]

 


Roman Rolland: «É um contador de histórias do Oriente que encanta e se comove com as suas próprias narrativas; e de um tal forma se prende a elas, que uma vez começada a história ninguém sabe, nem ele próprio sabe, se vai durar uma hora ou mil e uma noites.»


O mais significativo resultado de tudo isto deu-se em 1924 — o ano em que André Breton publicava Les Pas perdus, Raymond Radiguet surgia com o póstumo Le Bal du comte d’Orgel, Jean Cocteau com Le Grand écart e Jean Giraudoux com Juliette au pays des hommes — quando um desconhecido com estranho nome a soar muito a romeno, mas a mostrar que escrevia em francês, ofereceu ao público uma sedutora história de orientalismos que se chamava Kyra Kyralina. Dois anos antes, este Istrati já tinha quatro obras terminadas — Oncle Anghel, Kir Nicolas, Sotiz e Mikhail — mas o seu «mestre» preferiu-o na estreia literária com esta outra, mais recente e perturbante — que acrescentava ao nome de uma mulher o seu diminutivo — a que surgiu em 1923 na revista Europe e um ano depois em livro e prefaciada por Romain Rolland:

«Nos primeiros dias de Janeiro de 1921, foi-me entregue uma carta que vinha do Hospital de Nice. Tinha sido encontrada no corpo de um desesperado que acabava de dar um golpe na garganta. Havia poucas esperanças de que ele sobrevivesse ao ferimento. Li-a e fui invadido pelo tumulto do génio. Um vento que queimava na planície. Era a confissão de um novo Gorki dos países balcânicos. Conseguiram salvá-lo. Eu quis conhecê-lo. Encetámos uma correspondência. Ficámos amigos.»

[…] A surpresa de Kyra Kyralina animou um editor a fazer o contrato que deu a conhecer poucos meses depois Oncle Anghel e Présentation des Haïdoucs. E em 1927 a Nouvelles Littéraires já se interessava por ele como entrevistado. […]

Panait Istrati morreu em 16 de Abril de 1935. Tem uma lápide no cemitério de Bellu, em Bucareste, aonde foi parar sem serviços religiosos. A sua fama política incomodava a ortodoxia romena. [Aníbal Fernandes]
Codine, transformado no fora-da-lei por um sentimento cheio de violência contra a injustiça dos homens. Adrien, um apaixonado aprendiz do seu desiludido conhecimento dos males do mundo. Um estranho, incómodo e radical conceito do amor-amizade.

Os títulos do Istrati ficcionista vão aparecendo com uma imperturbável regularidade. Constroem aos poucos uma disfarçada autobiografia onde teremos de destrinçar o realmente vivido do literariamente contado, e que se divide em várias secções. […]
Panait Istrati conviveu com Codine cerca de cinco anos, desde 1891 a 1896, ou seja, desde os seus sete aos doze anos de idade. E a passagem a literatura desta apaixonada admiração põe-nos perante um estranho, incómodo e radical conceito de amizade. Nas histórias de Adrien Zograffi, a amizade tem um papel importante; é o mais profundo dos sentimentos, aquele que ultrapassa todos os outros, incluindo o do amor sensual. Deste amor sensual há a mais explícita das confissões quando escreve em Narrantsoula: "Amo no homem o que ele transporta consigo desde que nasce, o amor-amizade. Amo a mulher quando o seu sangue está abrasado pela paixão carnal. Entrego-me a eles sem condições, com frenesi. Isto custa caro, mas as decepções que sofri nunca me decepcionaram, nunca diminuem a soma dos meus desejos."
Na sua obra há a história de duas amizades masculinas que se destacam por uma brutal violência de sentimentos. [Aníbal Fernandes] 

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