O Caso Kurílov
de Irène Némirowsky
Texto sinóptico
Neste livro sobressai uma curiosa história de coabitação entre o assassino e a sua vítima. Lev M…, assumindo uma falsa identidade de médico, introduz-se nos mais íntimos círculos de um feroz ditador cuja eliminação física é preconizada pelos comités revolucionários de inspiração comunista. Mas o conhecimento profundo da natureza humana revela-se o pior dos inimigos da pureza revolucionária. Apesar de Kurílov ser visto por Lev M… como «o imbecil», «o cachalote», o «déspota frio», sentimentos de obscura piedade acabarão por fazê-lo fraquejar perante aquele enorme declínio do corpo roído por um cancro do fígado, aquela erosão, aquele doloroso crepúsculo de poder. E a Lev M…, quando escreve estas memórias e ele próprio já tem no seu passado um período de vida em que praticou, ao serviço da revolução socialista, actos de crueldade tão fria como a do ditador czarista, só lhe resta uma consciência melancólica de derradeiros dias, aquela que o sol ameno de Nice mal consegue iluminar. [Aníbal Fernandes]
O Caso Kurílov [1933] é a sexta obra publicada de Irène Némirowsky [Kiev, 11 de Fevereiro de 1903-Auschwitz, 17 de Agosto de 1942.], escritora de língua francesa. Entre os seus romances mais conhecidos destacam-se David Golder (1929), já publicado na Sistema Solar, Le Bal, La Proie (1938), Les chiens et les loups (1940) e Suite française, obra póstuma vencedora do prémio literário Renaudot de 2004.
A Viúva do Enforcado
de Camilo Castelo Branco
Texto sinóptico
«Teresa amava-o ardentemente. Aquele rapaz era, com efeito, o que devera ter sido o artista de Guimarães para que as duas almas se identificassem. António Maria era arrojado nas aspirações e invejava a morte duns heróis revolucionários, cuja história contava à viúva entusiasta.
Dramatizava coisas insignificantes com atitudes trágicas. Declamava com o timbre metálico de pulmões que se ensaiavam para o fôlego comprido das pugnas parlamentares. Sabia o gesto e a palavra atroadora de Desmoulins e Mirabeau.
Era um homem antípoda do defunto Guilherme. Não tinha cismas, arroubos, nem enlevos pelo azul dos céus além. O seu amor manifestava-se em convulsões assustadoras, e às vezes ajoelhava-se aos pés de Teresa com a humildade de uma criança, e não ousava beijar-lhe a barra do vestido. Se lhe apertava, porém, a mão, os seus dedos fincavam-se como garra do açor, e o sangue latejava-lhe nas falanges. Dizia que tinha vontade de afogá-la nas suas lágrimas, e morrer. Chamava-lhe a sua redentora, porque já não pensava em estrangular os tiranos da pátria, desde que todo o seu futuro estava no amor ou no des prezo da única dominadora do seu orgulho. Se Teresa um dia lhe desse o seu destino, queria ir com ela para a América inglesa, para o coração do mundo onde pulsa a liberdade humana. Se lá a não encontrassem, iriam procurá-la no deserto; à sombra de uma palmeira fariam uma cabana, e no seio de um areal cavariam a sepultura de ambos. Este homem tinha lido as melhores asneiras de 1829: a Adriana de Brianville e Amélia ou os efeitos da sensibilidade; e conhecia Atalá, traduzido em 1820, e as Aventuras do último abencerragem, em 1828. Possuía literatura bastante para levar a peçonha dos romances ao serralho de Mahmoud II.» [Camilo Castelo Branco]
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