Servindo-se de quatro adjectivos, descreva a Adriana Lisboa. Um por cada decénio da sua vida, respectivamente.
Primeiro decênio: tímida. segundo decênio: ansiosa. terceiro decênio: confusa. quarto decênio: curiosa.
O que recorda de mais precioso da sua infância no Rio de Janeiro?
Tive uma infância muito privilegiada, acho. Morava numa rua pouco movimentada no Rio e brincava muito na rua, talvez minhas melhores lembranças dessa época. Mas também passava as férias no interior do estado, na pequena fazenda do meu avô, e eram as temporadas em que era mais feliz: poder andar descalça por três meses. Os amigos que tinha lá. As brincadeiras absolutamente simples, a casa sem eletricidade, e o modo como tudo me parecia justo.
De que sente mais saudade quando está ausente do Brasil?
De andar na rua e me reconhecer na fisionomia, nos gestos, na voz das pessoas.
O gosto pela música despertou quando?
Cedo. Meus pais eram musicistas informais, minha mãe tocava violão e meu pai cantava. Havia serestas em casa com alguma frequência. No início da adolescência comecei a tocar violão, estudei canto, baixo elétrico, flauta transversa, piano. Meu primeiro trabalho foi como cantora de música popular brasileira na França, aos dezoito anos. Durante toda a adolescência eu passava boa parte do meu tempo livre lendo, escrevendo e ouvindo música.
Ensinar música, traduzir, escrever. Qual a profissão que lhe dá mais prazer?
Escrever, sem sombra de dúvida – e por isso as duas outras se encerraram. Escrever sempre foi a atividade mais genuína para mim, desde a infância. A música é extremamente importante na minha vida ainda hoje, e sou feliz em morar numa casa onde todos fazem música, de um jeito ou de outro. Mas prefiro não ser profissional. Traduzir é uma atividade interessante, mas desgastante e cansativa, que me acompanhou por uma década mais por necessidade do que por prazer.
Algum escritor tem influência no que a Adriana escreve?
Acho que muitos. Cada fase da minha vida teve os seus preferidos, alguns marcaram mais do que outros – Machado de Assis, que li pela primeira vez aos catorze anos e foi uma revolução, José Saramago e Guimarães Rosa, que encontrei aos dezoito ou dezanove (perdi a conta das vezes que reli Memorial do convento e Grande Sertão: Veredas). Também me marcaram muito, em épocas distintas, Marguerite Duras, Marguerite Yourcenar, Yasunari Kawabata, Virginia Woolf, os contos de Clarice Lispector, a poesia de Manuel Bandeira, Alberto Caeiro, Emily Dickinson, Rumi e Bashô. Poderia incluir vários outros nomes na lista. Neste momento ando fascinada por Nabokov e por alguns poetas americanos contemporâneos como W.S. Merwin e Elizabeth Spires, e brasileiros, como Mariana Ianelli e Eucanaã Ferraz.
Vencer o Prémio José Saramago foi um marco na sua vida profissional e pessoal, suponho. Que «peso» atribui a essa egrégia distinção?
O prémio foi importantíssimo por muitos motivos. Eu jamais, jamais teria sonhado em recebê-lo, foi uma surpresa que me pegou na contramão e me apresentou uma imagem de escritora profissional que eu ainda nem tinha de mim mesma (nem sei se hoje tenho). Graças a ele passei a ter uma agente – Ray-Güde Mertin, e hoje Nicole Witt, que herdou sua agência – e o prémio abriu as portas do mercado internacional. O dinheiro do prémio me permitiu pagar a casa onde morava, eu que vivia de traduções e de uma magra bolsa de doutorado. Mas principalmente o prémio me permitiu conhecer um dos autores que mais admirava (e admiro), José Saramago, pela obra que criou e pelo homem que era. Nem sempre as duas coisas vêm de mãos dadas, e não raro conhecer um autor que admiramos é frustrante – no meio literário, a vaidade grassa como uma peste. Saramago era sóbrio, sério e comprometido com uma ética que norteou, me parece, sua escrita e sua vida.
Sinfonia em Branco, Rakushisha e Azul-Corvo são os seus romances publicados em Portugal. Qual das obras aconselha a leitura, em primeiro?
Um beijo de colombina também foi publicado, pela Temas e Debates, mas acho que está esgotado. Eu tendo a julgar, o que talvez seja saudável, que o meu romance mais recente é sempre o mais bem sucedido. Por isso, eu indicaria Azul-corvo. Por outro lado, julgo os três romances bem distintos. De modo que é difícil estabelecer para mim mesma uma escala muito nítida.
A acção narrativa em Azul-Corvo decorre em parte no Rio de Janeiro e em parte no estado do Colorado (EUA) - onde a Adriana vive actualmente. O caminho trilhado pela protagonista do romance, Vanja, assemelha-se em algum aspecto ao da autora que a «criou»?
Ao vir para o Colorado há seis anos, a paisagem física do estado me impressionou muito. Eu era pesquisadora visitante na Universidade do Novo México, então fazia algumas vezes essa viagem de carro de Denver a Albuquerque, no NM. Sempre me tirava o fôlego. E foi assim que esse canto do mundo entrou na minha história.
Azul-Corvo tem-lhe trazido muitas alegrias?
Sim. Tem, principalmente, me rendido muitas respostas incríveis de leitores, e acho que esse contato pessoal, individual, a certeza de que o meu trabalho teve algum impacto na vida de alguém, é o que faz com que tudo realmente valha a pena.
A obra já foi traduzida para quantas línguas?
Foi traduzida para o espanhol (na Argentina, pela Edhasa) e o sérvio (Clio), sai este ano em italiano (La Nuova Frontiera) e francês (Métailié), e no próximo ano em inglês nos EUA e no Reino Unido (Bloomsbury). Estamos conversando sobre uma tradução para o árabe com um editor egípcio. O que acontece na minha carreira é que há países – como a Alemanha e a Romênia, por exemplo – que estão começando agora a traduzir a minha obra, e fazem isso quase sempre pelo Sinfonia em branco. Então, pode ser Azul-corvo venha a seguir na lista.
Em 2012, o cineasta Eduardo Montes-Bradley realizou um documentário sobre sua vida, intitulado Lisboa. Como surgiu o convite?
Eduardo é um cineasta argentino radicado nos EUA. Tínhamos tido um breve contato por email graças a um amigo comum, e quando Azul-corvo saiu na Argentina eu lhe mandei um exemplar. Ele gostou do livro e decidiu fazer o documentário. Veio até minha casa e passamos três dias viajando de carro e filmando o dia inteiro. Foi uma experiência muito interessante.
Este ano será lançado no Brasil uma nova edição de Sinfonia em Branco, obra pela qual lhe foi atribuído o Prémio Literário José Saramago, há dez anos. Contará com um prefácio especial…
Sim, Pilar del Río escreveu um prefácio maravilhoso que muito me alegrou e emocionou. Estou feliz com essa reedição, que espero também aconteça em Portugal.