No mundo
dos viajantes, o nome de Tiago Salazar é facilmente reconhecido. Considera-se
um autêntico andarilho, tendo palmilhado mais de meia centena de países.
É
jornalista há mais de 20 anos, tendo escrito sobre os temas mais diversos e
colaborado em jornais como o Diário de
Notícias, Expresso e Público, ou em revistas como a Egoísta e Visão & Viagens.
Leitor,
escritor, apresentador, cronista, formador, mas acima de tudo viajante
inveterado.
«O escritor é sempre um viajante por
condição de ofício», conta-nos Tiago. É autor dos livros Viagens Sentimentais (2007), A Casa
do Mundo (2008), As Rotas do Sonho
(2010) e Endereço Desconhecido (2011), todos publicados pela Oficina
do Livro.
Está a trabalhar em dois livros e
tem outro finalizado, e por estrear a 2ª série do programa Endereço Desconhecido, na RTP2, do
qual é apresentador.
O primeiro passo está dado. O check-in está feito. Destino: incerto.
Texto:
Miguel Pestana
Foto: Eva Houssman
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Tem quatro
livros editados e um rol extenso de crónicas publicadas em diversas revistas e
jornais. A sua paixão por escrever precedeu à de viajar, ou vice-versa?
É difícil apontar com exactidão o instante de uma
paixão e de outra. Talvez seja um caso uterino (consta que era um bebé
mexido...). Posso dizer que são ambas paixões-amores antigas e nasceram, disso
estou certo, na casa da minha avó materna (a Senhora Maria José de Vessadas
Salazar Morão de Campos Garcia). Aprendi a ler e escrever com a minha avó antes
de entrar para a escola primária e talvez pelos primeiros livros lidos -
muitos, por ironia do destino, de viagens, como as Viagens de Gullliver -
nasceu-me logo o instinto de ir por aí fora. Enquanto não foi possível ir além
dos bairros de Alvalade e das Avenidas Novas zarpava em cargueiros e botes de
páginas sublimes como as de As Aventuras de um Rapaz nas Florestas do
Amazonas ou Três Homens num Bote. Apontam-me hoje, enquanto autor de
livros de viagens, uma propensão para a citação (ou deverei antes dizer,
excitação), o que só posso tomar num exercício de auto-análise como um terrível
mal de juventude, pois nunca me vi em viagem sem um livro nas mãos ou na
cabeça.
O seu último livro Endereço desconhecido foi
publicado no Verão passado. Que feedback os leitores têm-lhe
transmitido sobre o livro?
É um livro fora de contexto dos três anteriores que
são um misto de reportagem, crónica e narrativa. O Endereço Desconhecido é um conjunto de guiões revistos e aumentados
que nasce de uma nova aventura, a de contar histórias para televisão. Digamos
que este é outro mundo, onde impera a economia narrativa, a frase curta,
directa e informativa, mais distante das minhas simpatias líricas e desabridas.
Porque a investigação e os conteúdos reunidos ultrapassaram em larga escala o
que foi mostrado na série de 12 episódios (disponível online no site da RTP2,
para quem queira conhecer um pouco da História e dos costumes dos membros mais
recentes da União Europeia) decidi juntar o material e dar aos meus leitores um
outro Tiago, guionista e apresentador de TV. Papel que, de resto, teve
continuidade e vai poder ser visto na II série do Endereço Desconhecido, a
estrear brevemente na RTP2, esta gravada integralmente no Brasil.
Qual a temática literária e autores que mais lê?
Sou um leitor errante e prisioneiro da inquietação.
Tanto leio ensaios a cheirar a mofo sobre alquimistas da Idade Média como as
crónicas do Ricardo Araújo Pereira, do Manuel António Pina e do meu querido
amigo Baptista-Bastos; contos avulso de russos e latino-americanos (agora,
mesmo aqui ao lado, os Contos Reunidos, de Felisberto Hernández, das
últimas edições dadas ao prelo pelo meu estimado amigo e grande editor Marcelo
Teixeira). Tagore, Neruda, Unamuno, Zambujal, Ernesto Sampaio, Clarice
Lispector, Henri Michaux (do Equador), Manuel da Silva Ramos (o mais original
romancista português vivo e bem vivo e mal lido) são companheiros frequentes
desta viagem das letras e da vida. À Clarice chamo-lhe Mãe, tanto como chamo
Pai ao Tagore. Depois há a literatura de viagens, desde as crónicas do Álvaro
Velho ao Mendes Pinto ou o Pêro da Covilhã. O Eça, claro, todo, do
romancista ao cronista, mas mais do que tudo o trota-mundos das Notas
Contemporâneas.
Sobre si, diz que é «o andarilho, ofício nobre a que
ninguém reconhece seriedade.» Quer dizer que actualmente ainda existe o
estereótipo de que o jornalista que viaja em trabalho, não é levado a sério?
Foi o ilustre galego Camilo José Cela o autor dessa
grande máxima profética e intemporal, quando editou a sua demanda de cronista
vagabundo e erudito ao serviço de Sua Majestade, el Rey de Espanha. O mesmo
autor a dedicar um livro aos inimigos que tanto o ajudaram na carreira, outra
frase em que muito me revejo. Vamos lá ver: que jornalista é hoje levado a
sério por mais difícil e exigente a sua tarefa? O pivot da TV, o cronista, o
repórter, o director da publicação, o freelancer que faz pela vida evitando a
corrupção inevitável? Sendo justos com a palavra, em Portugal, o jornalista de
viagens é uma raça a par do lince da Malcata - há muitos aspirantes à edição e
ao texto, mas jornalistas conheço poucos, e meios onde publicar cada vez menos.
É preciso recordar que a escrita de viagens não nasceu com o Gonçalo Cadilhe e
tivemos autores extraordinários ao longo da História como o Ramalho Ortigão, o
Eça ou o Ferreira de Castro, autores que acasalavam naturalmente os ofícios de
escritor e escritor viajante. O escritor é sempre um viajante por condição de
ofício.
Já realizou a sua viagem de sonho ou esta ainda está
porvir?
Ainda esta noite fui até Keppler 22b e a noite passada
naveguei nos braços da minha mulher que são portos de abrigo e terras-natal.
Sonho com a Patagónia, no sentido poético e fatalista do Blaise Cendrars que
depois de muito viajar dizia já mais nada lhe convir à sua infinita tristeza. O
sonho (em realização) é fazer da viagem (para dentro e para fora) um sentido
para a vida. Isso, que dá grandes dores e alegrias, faz-me sentido.
Viajante inveterado como é o Tiago, com certeza já
deve ter ouvido falar no projecto CouchSurfing (CS). Qual a sua
opinião sobre o conceito?
Conheço, subscrevo mas ainda não me tornei cliente. O
meu amigo Tiago Cação (viajante e couchsurfer) tem até uma cama no seu
restaurante da Tocha, o Mestre Zé, o que é levar o conceito à sua máxima
potência. Eu sou sobretudo um viajante aburguesado pelas circunstâncias, um
repórter de resort que vai optando cada vez mais por deixar que as coisas lhe
aconteçam.
O Lado Selvagem (Into the Wild) - um filme de 2007 - aborda a arte
de viajar sobre um ângulo muito idealista e estoicamente drástico. Viu o filme?
Se sim, qual a sua opinião?
Vi e comovi-me com várias coisas que dão importância a
isto de ser Homem, entre elas que ser livre e andar aqui em harmonia (harmonia
pelo conflito muitas vezes) dá muito trabalho e pede uma vigilância constante.
Um freak não é melhor viajante do que um yuppie apenas porque proclama o grito
do tá-se bem. O viajante aqui não é um suicida ou alguém que preferiu atirar-se
do abismo em valsa lenta. É uma viagem que procura na viagem o que eu procuro
no Soneto do Amor Total (de Vinicius). Morre a sorrir (se bem me lembro) numa
espécie de epifania, e se morre envenenado é porque houve um instante de
desatenção, mas não porque tenha procurado voluntariamente a sua morte.
Procurou, isso sim, uma explicação para os seus limites, como o fez com o
corpo, a viagem e a escrita o Mishima até chegar ao harakiri por insolução
filosófica. Sei que há a pequena morte depois do orgasmo quando é o orgasmo
cósmico, como há a morte depois de uma grande viagem, seja ela para a luz ou a escuridão,
o paraíso ou o inferno. Voltamos sempre a renascer numa energia renovada e
inteligível (mesmo que viver ultrapasse o entendimento) é o que eu acredito à
custa das viagens. É o que leio nesse magnífico filme do meu querido Sean
Penn.
O Tiago é formador de cursos de escrita de viagens.
Que tipo de público inscreve-se nessas formações?
Dou cursos de História da Literatura e Escrita de
Viagens para públicos de todas as idades e formações. Acabo de lançar uma
variante infanto-juvenil a partir da Peregrinação e da História
Trágico-Marítima. São pessoas apaixonadas por ler e viajar e que não entendem
uma sem a outra. Os cursos atravessam 500 anos de escrita portuguesa e
universal. Por escassez de tempo acabam por ser viagens relâmpago mas as
pessoas entusiasmam-se e trocamos muitas experiências e livros.
O Tiago foi o autor e apresentador do programa Endereço
Desconhecido, exibido na RTP2 de Janeiro a Março de 2011 – num total de 12
episódios. Como descreve essa experiência?
Foi uma viagem de entendimento retrospectivo
chamemos-lhe assim. Estudei Relações Internacionais e conhecia alguma da
História recente destes países (Malta, Eslovénia, Eslováquia, Lituânia,
Letónia, Estónia, República Checa, Polónia, Bulgária, Chipre, Hungria,
Roménia), mas aqui os livros não chegam e morrem depressa. A velocidade a que
por exemplo se exumaram os cadáveres comunistas é notável. Conhecia o leste
russo e sabia da história da ocupação contada pelos russos, a maioria
progressistas e anti-soviéticos. É admirável ver como alguns povos de histórias
recentes de carnificina reagem com humor às suas páginas sangrentas: por
exemplo, fazer jogos de guerra tipo paintball nos mesmo lugares onde os russos
deram caça aos seus pares (falo dos letónios de Liepaja).
Já percorreu mais de 50 países em reportagem, sendo o
Brasil um dos últimos países visitados (e que servirá de pano de fundo na 2ª
série do programa Endereço Desconhecido). O país de Vera Cruz
reserva-nos algumas surpresas?
Garantidamente que este meu Brasil tem aquilo que é o
melhor para quem anda a viajar, o inesperado. Por mais que se parta com
pesquisas feitas à custa das obrigações da produção o factor surpresa e no caso
brasileiro o à-vontade e a inexistência da barreira da língua trazem para os
encontros uma espantosa vivacidade. Acho que o público vai querer atravessar o
Atlântico ainda mais depressa e ver que não é mito o Brasil continuar a ser 500
anos depois a terra das grandes oportunidades.
Está a trabalhar num novo livro?
Estou a trabalhar em dois, um livro de crónicas do
Brasil e um romance. Tenho ainda um livro infanto-juvenil acabado e a ser
preparado (ainda sem data de lançamento), este com desenhos do cartoonista
Vasco de Castro. Espero que 2013 seja o ano de dar alegrias aos meus
leitores.
Acho que respondi na pergunta anterior. Mas, digo que
sim. As viagens acabam por me tirar alguma disponibilidade para a dedicação
monástica que pede o romance. Para não viver de vida adiada resolvi escrever
como escrevi em tempos um projecto de crónicas que é escrever um número de
páginas diário e seja o que o Altíssimo quiser. O importante é eu lá estar e já
agora contar o melhor possível esta história que me apareceu numa viagem. A caminhar,
o que é simbólico na vida de um andarilho professo.
Para o leitor que acaba de ler esta entrevista e ficou
com curiosidade em comprar algum dos seus livros, qual o que recomenda em
primeiro?
O livro Viagens Sentimentais, o meu primeiro, é também o meu primeiro mapa
mundo e onde fui mais longe na arte de contar histórias de viagens. Gosto de
olhar para aquele Tiago sem compromissos senão o de escrever, viver e viver
para contar o melhor possível.■
Pode assistir aos 12 episódios do programa Endereço Desconhecido no sítio da web da RTP2 aqui.
Nota: A entrevista foi realizada via e-mail.