terça-feira, 29 de maio de 2012

Entrevista a Tiago Salazar

[Escrever e viajar] são ambas paixões-amores antigas e nasceram, disso estou certo, na casa da minha avó materna (a Senhora Maria José de Vessadas Salazar Morão de Campos Garcia). Aprendi a ler e escrever com a minha avó

No mundo dos viajantes, o nome de Tiago Salazar é facilmente reconhecido. Considera-se um autêntico andarilho, tendo palmilhado mais de meia centena de países.
É jornalista há mais de 20 anos, tendo escrito sobre os temas mais diversos e colaborado em jornais como o Diário de Notícias, Expresso e Público, ou em revistas como a Egoísta e Visão & Viagens.
Leitor, escritor, apresentador, cronista, formador, mas acima de tudo viajante inveterado.
«O escritor é sempre um viajante por condição de ofício», conta-nos Tiago. É autor dos livros Viagens Sentimentais (2007), A Casa do Mundo (2008), As Rotas do Sonho (2010) e Endereço Desconhecido (2011), todos publicados pela Oficina do Livro.
Está a trabalhar em dois livros e tem outro finalizado, e por estrear a 2ª série do programa Endereço Desconhecido, na RTP2, do qual é apresentador. 

O primeiro passo está dado. O check-in está feito. Destino: incerto.

Texto: Miguel Pestana
Foto: Eva Houssman
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Tem quatro livros editados e um rol extenso de crónicas publicadas em diversas revistas e jornais. A sua paixão por escrever precedeu à de viajar, ou vice-versa? 
É difícil apontar com exactidão o instante de uma paixão e de outra. Talvez seja um caso uterino (consta que era um bebé mexido...). Posso dizer que são ambas paixões-amores antigas e nasceram, disso estou certo, na casa da minha avó materna (a Senhora Maria José de Vessadas Salazar Morão de Campos Garcia). Aprendi a ler e escrever com a minha avó antes de entrar para a escola primária e talvez pelos primeiros livros lidos - muitos, por ironia do destino, de viagens, como as Viagens de Gullliver - nasceu-me logo o instinto de ir por aí fora. Enquanto não foi possível ir além dos bairros de Alvalade e das Avenidas Novas zarpava em cargueiros e botes de páginas sublimes como as de As Aventuras de um Rapaz nas Florestas do Amazonas ou Três Homens num Bote. Apontam-me hoje, enquanto autor de livros de viagens, uma propensão para a citação (ou deverei antes dizer, excitação), o que só posso tomar num exercício de auto-análise como um terrível mal de juventude, pois nunca me vi em viagem sem um livro nas mãos ou na cabeça. 

O seu último livro Endereço desconhecido foi publicado no Verão passado. Que feedback os leitores têm-lhe transmitido sobre o livro? 
É um livro fora de contexto dos três anteriores que são um misto de reportagem, crónica e narrativa. O Endereço Desconhecido é um conjunto de guiões revistos e aumentados que nasce de uma nova aventura, a de contar histórias para televisão. Digamos que este é outro mundo, onde impera a economia narrativa, a frase curta, directa e informativa, mais distante das minhas simpatias líricas e desabridas. Porque a investigação e os conteúdos reunidos ultrapassaram em larga escala o que foi mostrado na série de 12 episódios (disponível online no site da RTP2, para quem queira conhecer um pouco da História e dos costumes dos membros mais recentes da União Europeia) decidi juntar o material e dar aos meus leitores um outro Tiago, guionista e apresentador de TV. Papel que, de resto, teve continuidade e vai poder ser visto na II série do Endereço Desconhecido, a estrear brevemente na RTP2, esta gravada integralmente no Brasil. 

Qual a temática literária e autores que mais lê?
Sou um leitor errante e prisioneiro da inquietação. Tanto leio ensaios a cheirar a mofo sobre alquimistas da Idade Média como as crónicas do Ricardo Araújo Pereira, do Manuel António Pina e do meu querido amigo Baptista-Bastos; contos avulso de russos e latino-americanos (agora, mesmo aqui ao lado, os Contos Reunidos, de Felisberto Hernández, das últimas edições dadas ao prelo pelo meu estimado amigo e grande editor Marcelo Teixeira). Tagore, Neruda, Unamuno, Zambujal, Ernesto Sampaio, Clarice Lispector, Henri Michaux (do Equador), Manuel da Silva Ramos (o mais original romancista português vivo e bem vivo e mal lido) são companheiros frequentes desta viagem das letras e da vida. À Clarice chamo-lhe Mãe, tanto como chamo Pai ao Tagore. Depois há a literatura de viagens, desde as crónicas do Álvaro Velho ao Mendes Pinto ou o Pêro da Covilhã. O Eça, claro, todo,  do romancista ao cronista, mas mais do que tudo o trota-mundos das Notas Contemporâneas.  

Sobre si, diz que é «o andarilho, ofício nobre a que ninguém reconhece seriedade.» Quer dizer que actualmente ainda existe o estereótipo de que o jornalista que viaja em trabalho, não é levado a sério?
Foi o ilustre galego Camilo José Cela o autor dessa grande máxima profética e intemporal, quando editou a sua demanda de cronista vagabundo e erudito ao serviço de Sua Majestade, el Rey de Espanha. O mesmo autor a dedicar um livro aos inimigos que tanto o ajudaram na carreira, outra frase em que muito me revejo. Vamos lá ver: que jornalista é hoje levado a sério por mais difícil e exigente a sua tarefa? O pivot da TV, o cronista, o repórter, o director da publicação, o freelancer que faz pela vida evitando a corrupção inevitável? Sendo justos com a palavra, em Portugal, o jornalista de viagens é uma raça a par do lince da Malcata - há muitos aspirantes à edição e ao texto, mas jornalistas conheço poucos, e meios onde publicar cada vez menos. É preciso recordar que a escrita de viagens não nasceu com o Gonçalo Cadilhe e tivemos autores extraordinários ao longo da História como o Ramalho Ortigão, o Eça ou o Ferreira de Castro, autores que acasalavam naturalmente os ofícios de escritor e escritor viajante. O escritor é sempre um viajante por condição de ofício.  

Já realizou a sua viagem de sonho ou esta ainda está porvir?
Ainda esta noite fui até Keppler 22b e a noite passada naveguei nos braços da minha mulher que são portos de abrigo e terras-natal. Sonho com a Patagónia, no sentido poético e fatalista do Blaise Cendrars que depois de muito viajar dizia já mais nada lhe convir à sua infinita tristeza. O sonho (em realização) é fazer da viagem (para dentro e para fora) um sentido para a vida. Isso, que dá grandes dores e alegrias, faz-me sentido.  

Viajante inveterado como é o Tiago, com certeza já deve ter ouvido falar no projecto CouchSurfing (CS). Qual a sua opinião sobre o conceito?
Conheço, subscrevo mas ainda não me tornei cliente. O meu amigo Tiago Cação (viajante e couchsurfer) tem até uma cama no seu restaurante da Tocha, o Mestre Zé, o que é levar o conceito à sua máxima potência. Eu sou sobretudo um viajante aburguesado pelas circunstâncias, um repórter de resort que vai optando cada vez mais por deixar que as coisas lhe aconteçam.

O Lado Selvagem (Into the Wild) - um filme de 2007 - aborda a arte de viajar sobre um ângulo muito idealista e estoicamente drástico. Viu o filme? Se sim, qual a sua opinião?
Vi e comovi-me com várias coisas que dão importância a isto de ser Homem, entre elas que ser livre e andar aqui em harmonia (harmonia pelo conflito muitas vezes) dá muito trabalho e pede uma vigilância constante. Um freak não é melhor viajante do que um yuppie apenas porque proclama o grito do tá-se bem. O viajante aqui não é um suicida ou alguém que preferiu atirar-se do abismo em valsa lenta. É uma viagem que procura na viagem o que eu procuro no Soneto do Amor Total (de Vinicius). Morre a sorrir (se bem me lembro) numa espécie de epifania, e se morre envenenado é porque houve um instante de desatenção, mas não porque tenha procurado voluntariamente a sua morte. Procurou, isso sim, uma explicação para os seus limites, como o fez com o corpo, a viagem e a escrita o Mishima até chegar ao harakiri por insolução filosófica. Sei que há a pequena morte depois do orgasmo quando é o orgasmo cósmico, como há a morte depois de uma grande viagem, seja ela para a luz ou a escuridão, o paraíso ou o inferno. Voltamos sempre a renascer numa energia renovada e inteligível (mesmo que viver ultrapasse o entendimento) é o que eu acredito à custa das viagens. É o que leio nesse magnífico filme do meu querido Sean Penn.

O Tiago é formador de cursos de escrita de viagens. Que tipo de público inscreve-se nessas formações?
Dou cursos de História da Literatura e Escrita de Viagens para públicos de todas as idades e formações. Acabo de lançar uma variante infanto-juvenil a partir da Peregrinação e da História Trágico-Marítima. São pessoas apaixonadas por ler e viajar e que não entendem uma sem a outra. Os cursos atravessam 500 anos de escrita portuguesa e universal. Por escassez de tempo acabam por ser viagens relâmpago mas as pessoas entusiasmam-se e trocamos muitas experiências e livros.

O Tiago foi o autor e apresentador do programa Endereço Desconhecido, exibido na RTP2 de Janeiro a Março de 2011 – num total de 12 episódios. Como descreve essa experiência? 
Foi uma viagem de entendimento retrospectivo chamemos-lhe assim. Estudei Relações Internacionais e conhecia alguma da História recente destes países (Malta, Eslovénia, Eslováquia, Lituânia, Letónia, Estónia, República Checa, Polónia, Bulgária, Chipre, Hungria, Roménia), mas aqui os livros não chegam e morrem depressa. A velocidade a que por exemplo se exumaram os cadáveres comunistas é notável. Conhecia o leste russo e sabia da história da ocupação contada pelos russos, a maioria progressistas e anti-soviéticos. É admirável ver como alguns povos de histórias recentes de carnificina reagem com humor às suas páginas sangrentas: por exemplo, fazer jogos de guerra tipo paintball nos mesmo lugares onde os russos deram caça aos seus pares (falo dos letónios de Liepaja).

Já percorreu mais de 50 países em reportagem, sendo o Brasil um dos últimos países visitados (e que servirá de pano de fundo na 2ª série do programa Endereço Desconhecido). O país de Vera Cruz reserva-nos algumas surpresas? 
Garantidamente que este meu Brasil tem aquilo que é o melhor para quem anda a viajar, o inesperado. Por mais que se parta com pesquisas feitas à custa das obrigações da produção o factor surpresa e no caso brasileiro o à-vontade e a inexistência da barreira da língua trazem para os encontros uma espantosa vivacidade. Acho que o público vai querer atravessar o Atlântico ainda mais depressa e ver que não é mito o Brasil continuar a ser 500 anos depois a terra das grandes oportunidades.

Está a trabalhar num novo livro? 
Estou a trabalhar em dois, um livro de crónicas do Brasil e um romance. Tenho ainda um livro infanto-juvenil acabado e a ser preparado (ainda sem data de lançamento), este com desenhos do cartoonista Vasco de Castro. Espero que 2013 seja o ano de dar alegrias aos meus leitores. 

Podemos esperar um livro do Tiago num outro estilo que não o da literatura de viagens?
Acho que respondi na pergunta anterior. Mas, digo que sim. As viagens acabam por me tirar alguma disponibilidade para a dedicação monástica que pede o romance. Para não viver de vida adiada resolvi escrever como escrevi em tempos um projecto de crónicas que é escrever um número de páginas diário e seja o que o Altíssimo quiser. O importante é eu lá estar e já agora contar o melhor possível esta história que me apareceu numa viagem. A caminhar, o que é simbólico na vida de um andarilho professo.

Para o leitor que acaba de ler esta entrevista e ficou com curiosidade em comprar algum dos seus livros, qual o que recomenda em primeiro?
O livro Viagens Sentimentais, o meu primeiro, é também o meu primeiro mapa mundo e onde fui mais longe na arte de contar histórias de viagens. Gosto de olhar para aquele Tiago sem compromissos senão o de escrever, viver e viver para contar o melhor possível.




Pode assistir aos 12 episódios do programa Endereço Desconhecido no sítio da web da RTP2 aqui.

Nota: A entrevista foi realizada via e-mail.

6 comentários:

Anónimo disse...

Tiago Salazar é um grande jornalista de viagens que transmite nas suas viagens um conhecimento de muitas culturas.

Tiago M. Franco disse...

Na minha opinião o melhor escritor de viagens português é Gonçalo Cadilhe.

Juan Pardo disse...

Realmente es un placer conocer tu blog , lleno de creatividad.Tomo nota de tus recomendaciones literarias.Saludos poéticos.

Miguel Pestana disse...

Gracias por pasar Juan aquí en mi blog.

Es gratificante para mí sus palabras.

Saludos!!!

António Lopes disse...

Tiago Franco! tanto Gonçalo Cadilhe e Tiago Salazar são escritores de viagens muito bons que pessoa tem o seu ponto de vista mas eu pessoalmente gosto do trabalho de ambos. um abraço

brunomyra disse...

Já li o livro "As Rotas do Sonho" e gostei bastante. Tentarei ler os outros, pois é um escritor cativante.