sexta-feira, 12 de abril de 2024

«Deus na Escuridão», de Valter Hugo Mãe

Editora: Porto Editora
Data de publicação: 18-01-2024
N.º de páginas: 288

A acção do mais recente romance de Valter Hugo Mãe, um dos autores portugueses mais destacados da actualidade, é ambientada aqui, na ilha da Madeira, mais concretamente em Campanário. A agricultura é a actividade principal desta freguesia pertencente ao concelho da Ribeira Brava. Por encostas e lombadas íngremes deste lugar rural, nos inícios da década 1980, encontramos a casa onde vive uma família, os Pardieiros, cuja alcunha já nos remete para a indigência.
É neste cenário que o autor nos apresenta Pouquinho, um recém-nascido, o segundo filho do casal. É o filho mais velho que nos narra que o irmão nascera «aleijado» e «abreviado», augúrio de desgosto e vergonha para a família, por causa da maledicência que haverá de ser perpetuada pela vizinhança, que num sítio recôndito, tudo sabe, nada perdoa. Contudo, para Felicíssimo, esse ser infortunado é um «pedacinho de Deus», a quem promete proteger afincadamente: «Amamos mais quem vemos em perigo. Somos feitos para aumentar de coração perante a família que sofre.»
Na segunda parte do livro, volvidos estão vinte anos, o narrador intradiegético vê-se envolvido numa elipse existencial; os seus amigos de infância foram alistados no serviço militar (enquanto ele foi dado como néscio), rumaram para novos destinos, formaram família; Felicíssimo, constata que não consegue alcançar nenhum horizonte, embora vislumbre o Oceano todos os dias. É um solitário, um desamparado, sem rumo, sem direcção. Os anos passaram por ele, enquanto trabalhava na terra e cuidava e amava o irmão.
Deus na Escuridão é uma história, que habilmente e subtilmente, elogia o amor fraterno e materno. Revela um escritor que fez um trabalho de pesquisa exaustivo (sabemos que in loco), pois são verosímeis todos os topónimos referidos na narrativa. Ser e viver enquanto ilhéu, com todos os prós e contras, está bem retratado nesta obra tecida com engenho e conhecimento no domínio da língua portuguesa e as suas variações.
Eis apenas alguns regionalismos madeirenses (palavras que passaram de geração em geração, impossíveis de traduzir à letra) que Valter Hugo Mãe incluiu na história: «azougar», «buzico», «estepilha», «forrado», «semilha». Para o leitor madeirense, a leitura faz-se contínua e sem quiproquós, sem interrupções para pesquisar vocábulos autóctones. Para o leitor não madeirense, principalmente para o que lerá este livro traduzido (alguns livros do autor encontram-se publicados em vários países), um glossário serviria de auxílio para uma boa interpretação.
Salientar que neste livro de Valter Hugo Mãe, que celebra 20 anos na escrita de romances (em 2004 foi publicado O nosso reino), a espiritualidade está em constante omnipresença. Deus na Escuridão contém passagens belíssimas como as seguintes:

«Quando nasce uma cria, há um planeta com seu nome onde só sua mãe habita.» (p. 30)

«Deus é exatamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.» (p. 147)

«Deus está na escuridão, e tacteia por toda a parte na vontade intensa de um toque, do aconchego do corpo dos filhos, um gentil toque ou um abraço.» (p. 147)

«Os filhos partem sem saberem que o sentido da vida é chegar à origem.» (p. 148)

«Quando a tristeza é sem fim, certamente só a lonjura pode almejar a ilusão de uma trégua.» (p. 250)

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