«Húmus», de Raul Brandão
Húmus é um dos títulos pertencentes à coleção Biblioteca Fundamental da Literatura Portuguesa, da editora Imprensa Nacional.
Publicado em 1917, esta é uma obra central do modernismo português, embora com fortes traços simbolistas e expressionistas. O livro não segue uma narrativa linear tradicional — é antes uma sequência de fragmentos, reflexões e descrições que exploram a condição humana.
«Raul Brandão rompeu com as conceções literárias vigentes no seu tempo, em nome da liberdade reclamada pela vocação indagadora de uma arte singularmente atenta à crise de valores que então se vive e à injustiça social», afirma a especialista Maria João Reynaud, doutorada em Literatura Portuguesa com uma uma tese sobre as três versões de Húmus.
Ao longo de 20 capítulos, Raul Brandão mistura prosa poética, imagens intensas e um tom melancólico para falar da vida, da certeza da morte, do sentido (ou falta dele) da existência e do inevitável destino de todos os seres: a decomposição, o “húmus”, metáfora para a decomposição e a renovação, que dá título à obra.
Há personagens recorrentes — padres, camponeses, velhos, pobres, soldados — mas eles funcionam mais como símbolos do sofrimento, da miséria e da efemeridade do ser humano do que como protagonistas de uma história. O espaço é frequentemente a aldeia ou o campo português, envolto em neblina e decadência.
Um dos grandes temas deste romance é a oposição entre a aparência e a essência, mas também, tem como sub-temas, a efemeridade da vida, a condição humana, a injustiça social e a Natureza como espelho existencial.
Em essência, é um livro sobre a fragilidade da vida, a presença constante da morte e a tentativa de compreender, ou ao menos sentir, o mistério do mundo. A escrita é densa, poética e carregada de imagens de natureza e decomposição, tornando-se quase um diário existencial.
Com Húmus, Brandão constrói um belíssimo retrato lírico-existencial da condição humana, onde a morte, longe de ser fim, se torna princípio de reflexão e criação.
O seguinte parágrafo, que transcrevo da página 67 do livro, capta perfeitamente o sentimento de claustrofobia, repetição e a urgência existencial que marcam a escrita do autor de As ilhas desconhecidas (1926) – a angústia diante da vida padronizada e a necessidade de libertar algo profundo que está contido:
«Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca‑nos. Pega‑se. Adere. Há dias em que não distingo estes seres da minha própria alma; há dias em que através das máscaras vejo outras fisionomias, e, sob a impassibilidade, dor; há dias em que o céu e o inferno esperam e desesperam. Pressinto uma vida oculta, a questão é fazê‑la vir à supuração.»
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