sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Entrevista a João Carlos Melo


É psiquiatra, psicoterapeuta e grupanalista, sendo considerado uma referência nacional na área da saúde mental. 
Assistente Graduado do Hospital Fernando Fonseca, onde coordena o Hospital de Dia do Serviço de Psiquiatria, João Carlos Melo é também autor de numerosos artigos científicos. Desde sempre manteve o
 fascínio por compreender o funcionamento mental, bem como os meandros da natureza humana.

Nesta entrevista, partilha a sua visão sobre os desafios atuais da psiquiatria e o papel de novas abordagens terapêuticas, como o uso de psicadélicos. Analisa também a forma como as doenças mentais são percecionadas e tratadas em Portugal; critica a abordagem frequentemente simplista e pouco rigorosa que o tema recebe nos meios de comunicação; reflete sobre a “ilusão de comunicação” gerada pelas redes sociais; e comenta a presença de indivíduos com traços psicopáticos em posições de chefia, que recorrem ao assédio moral no ambiente laboral, entre outros tópicos. 

Renascer das Cinzas, lançado em junho pela Bertrand Editora, é o mais recente livro de João Carlos Melo, escrito em coautoria com Maria C., sua paciente. A obra analisa três perturbações psicológicas complexas e estigmatizadas, com destaque para a Síndrome de Munchausen, uma grave doença, a de pior prognóstico de todas as doenças psiquiátricas, caracterizada pela simulação de sintomas para obter atenção médica. João Carlos Melo é um dos poucos psiquiatras no mundo com experiência no tratamento desta patologia. 

Miguel Pestana | Fotos: DR 
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Quando tomou a decisão de seguir a carreira de médico psiquiatra? 
A minha curiosidade sobre o comportamento das pessoas e o seu funcionamento mental remonta a um tempo em que ainda nem tinha decidido que queria ser médico. E quando entrei para Medicina já era claro que queria ser psiquiatra.  
Mas não me contentei em ser apenas psiquiatra. Quis também ser Psicoterapeuta e Grupanalista, e foi nesse sentido que fiz formações longas e rigorosas que me têm sido muito úteis, não só profissionalmente, mas também como pessoa. 

Em 2025, qual considera ser a doença mental mais prevalente em Portugal? 
As doenças mentais propriamente ditas não são mais frequentes em Portugal do que noutros países, mas neste campo há um pormenor de grande importância, como mostra um estudo concluído há dez anos e que ainda se mantém atual. 
Esse estudo, coordenado por Caldas de Almeida e Miguel Xavier, psiquiatras e professores universitários de renome, concluiu que, a par da Irlanda do Norte, Portugal é o país Europeu com mais alta prevalência de perturbações psiquiátricas (22,9 %). Por curiosidade: essa prevalência chegou aos 27 % nos Estados Unidos e a 29,6 no Brasil.  
Mas é importante referir que estas “perturbações mentais”, como lhes chamei, não correspondem a doenças propriamente ditas, como Esquizofrenia ou Doença Bipolar, mas antes a queixas emocionais e queixas físicas associadas a sintomas de ansiedade e depressão. 
Nos nossos dias fala-se mais de Perturbação Borderline e PHDA (Perturbação de Hiperatividade e Défice de Atenção), em parte porque são mais frequentes e em parte porque são mais disgnosticadas do que eram.  

O nosso país regista uma das maiores prevalências de doenças psiquiátricas na Europa, o que se traduz num consumo elevado de psicotrópicos. Qual é a sua opinião sobre esta situação?
Esta é uma questão da maior pertinência porque ela tem sido perturbada por pontos de vista que têm por detrás muita ignorância, preconceitos e estigma.  
É claro que o elevado consumo de psicotrópicos deriva diretamente da alta prevalência de situações clínicas em que predominam sintomas ansiosos e depressivos, mas a questão que podemos levantar é esta: a prescrição destes medicamentos é excessiva? Poderia ser menor se, em vez dessas prescrições, as pessoas fizessem psicoterapia? 
Aqui está um ponto fulcral, mas, ao mesmo tempo, aquele onde começam os problemas. Numa tentativa de clarificar a questão, há duas ideias importantes que, na minha opinião, são factuais.  Em primeiro lugar, os medicamentos que atuam nos sintomas ansiosos e depressivos são eficazes e seguros. Por outro lado, a maioria dos psiquiatras e psicólogos não tem uma formação psicoterapêutica idónea.  
Em função destes factos, muitos psiquiatras limitam-se a prescrever fármacos e muitos psicólogos fazem o que chamam psicoterapias sem possuírem formação específica para tal.  Outra consequência deste estado de coisas é a desinformação e os preconceitos em relação aos psicofármacos. Já houve quem me tivesse perguntado se eu era “a favor ou contra os medicamentos da psiquiatria”. E já me deparei com pais que recusaram que os filhos fossem medicados, com a alegação de “não concordarem” com os medicamentos. Seria como, perante a prescrição de um antibiótico para tratar uma pneumonia, uma pessoa o recusasse, com o argumento de ser “contra os antibióticos”.  
Diante de tudo isto, penso que deverão ser o conhecimento baseado na ciência e o bom senso a nortear-nos.  
Tem sido comprovado sem margem para quaisquer dúvidas que, na maioria das situações, não faz sentido considerar uma oposição entre a medicação e a psicoterapia, embora deva haver um maior predomínio de uma ou da outra conforme os casos.  
Há pessoas, entre as quais alguns técnicos de saúde mental, que são “contra” a medicação, sob a alegação de se estar a “tapar” ou “disfarçar” o problema em vez de o tratar - seria como um “penso rápido”, dizem, que impede de ir à “causa” do problema. Esta ideia, e os procedimentos em conformidade, levam a situações de sofrimento prolongado e inútil, impedindo as pessoas de verem os seus sintomas e a sua qualidade de vida melhorados. Nesses casos, aliviados esses sintomas e o consequente sofrimento, a pessoa estará mais livre e disponível para empreender uma psicoterapia.  
Na prática, para certos problemas mentais, o único técnico preparado para estabelecer se há indicação para prescrição medicamentosa deverá ser o psiquiatra - do mesmo modo que, perante  certos problemas de saúde, deverá ser um cirurgião, e não outro médico qualquer, a determinar a necessidade, ou não, de uma intervenção cirúrgica.  
Posto tudo isto, o que digo é: haja bom senso, defenda-se o conhecimento científico e acabe-se com os preconceitos, o estigma e a ignorância.  Bem sei que não é fácil, mas penso que é esse o caminho.  

Nos últimos anos, a saúde mental tem ganho maior visibilidade nos meios de comunicação. O Dr. João Carlos Melo considera que esta exposição é, maioritariamente, tratada de forma rigorosa ou simplista? 

Na minha opinião é tratada predominantemente de uma forma simplista e pouco rigorosa. Os meios de comunicação preferem passar a ideia de que, com força de vontade e querer, é fácil as pessoas superarem-se, transformarem-se nas suas melhores versões e seguirem estratégias e fazerem exercícios e levarem a cabo tarefas simples para se tornarem saudáveis.  
Não é popular falar de doenças graves. Não é popular falar de casos reais de uma forma realista e não espetacular. Não é popular falar da falta gritante de cuidados psiquiátricos nas prisões. Não é popular falar de forma clara (e não espetacular) de algumas das maiores pragas que afetam o nosso país: o bullying, a violência doméstica e os abusos sexuais.  

O Infarmed aprovou recentemente o primeiro psicadélico para depressão grave a ser utilizado em meio hospitalar. Acredita que estas substâncias poderão revolucionar a psiquiatria? 
Revolucionar, não digo, mas serão (e já estão a ser) um valioso contributo para o tratamento de depressões graves.  

O seu mais recente livro, Renascer das Cinzas, chegou às livrarias no início de Junho. O que o motivou a abordar, num livro, de forma tão aberta, três perturbações ainda pouco compreendidas e muito estigmatizadas — Transtorno de Perturbação Borderline, Síndrome de Munchausen e Mentira Patológica? 
Sobre a Perturbação Borderline já tinha escrito em Reféns das próprias emoções.  
A Mentira Patológica será, muito provavelmente em breve, considerada uma doença. É importante conhecê-la e não a confundir com a mentira levada a cabo pelos psicopatas. Creio que não há nenhum livro português sobre o tema.  
E a Perturbação Factícia (ainda mais conhecida como Síndrome de Munchausen), embora seja conhecida superficialmente pelos psiquiatras, porque já ouviram falar dela, é ainda muito mal conhecida. Estou convencido, pelo muito que estudei da doença, que sou dos únicos psiquiatras do mundo já com alguma experiência em tratar esta gravíssima doença, a de pior prognóstico de todas as doenças psiquiátricas. 
Estas são razões mais que suficientes para justificar a escrita deste livro. Mas Renascer das Cinzas não se limita a dar-lhes a conhecer. Ele fala do caso real de uma paciente vitimada por estas três doenças. E foi escrito em co-autoria com ela. 

A Síndrome de Munchausen é descrita por si como «a mais perturbadora, devastadora e intrigante das doenças [mentais]», mais difícil de tratar do que a esquizofrenia. Tendo em conta a sua experiência, o que a torna tão desafiante? 
Sabe-se muito pouco sobre esta doença. E a principal razão é a falta de colaboração dos próprios pacientes afetados por ela. Eles mentem, enganam e não admitem ter a doença. Quando percebem que estão a ser “apanhados”, desaparecem e mudam de médico, de hospital, de cidade, e, em alguns casos, até de país. 
Ainda que seja conhecida por basear-se em comportamentos que visam apenas enganar os médicos (fingindo que estão doentes e provocando doenças em si próprios, quando sabem muito bem que não estão doentes), o que leva a estes comportamentos é um sofrimento insuportável e incomunicável, ao ponto de, segundo alguns estudos, fazer com que até 70 % dos doentes acabe por se suicidar. 

No livro, Maria partilha: «inventava sintomas só para ter cuidados médicos e não me sentir tão sozinha». Como terapeuta, como se trabalha uma solidão tão enraizada que leva a este tipo de comportamento? 
A principal medida terapêutica é não abandonar o doente. E aceitar que, para o ajudar, é necessário aguentar as mentiras e os enganos.  
A questão é: como é possível confiar em alguém que nos mente e engana? E a resposta é: não abandonando o doente. Não há outra forma. Depois, é fundamental aguentar a solidão do doente e estar preparado para acolher e conter um vazio e um desamparo que são quase incompatíveis com a vida e angustiantes para o próprio terapeuta. 

Em que momentos percebeu que algo estava verdadeiramente a mudar na paciente — progredindo para aquilo que descreve como uma «extraordinária e inédita recuperação», um caso raro de superação da Síndrome de Munchausen? 
Não foi de um momento para o outro. Foi um processo. Os momentos decisivos foram quando começou a ser possível falarmos de “mentiras” e de “Munchausen”, porque de início eram palavras tabu e ela não só não admitia falar disso, como não admitia que mentia e que tinha comportamentos factícios.  
As mentiras não acabaram de um momento para o outro. Mas, desde o início, e sempre, a sua determinação em melhorar e a sua tenacidade em prosseguir a psicoterapia foram os fatores mais decisivos. Tal como a minha determinação, o meu empenho e a minha dedicação. 

No final do livro, Maria fala em «superação» e o Dr. João Carlos Melo refere que esta paciente «venceu» a doença, mas o próprio texto menciona um internamento recente, em março de 2025. Considera que é possível falar em cura antes de um período prolongado sem sintomas?
São palavras e conceitos muito delicados. Vejamos em concreto. O vazio, o desamparo, o sofrimento, a dificuldade em regular as emoções, a baixa autoestima e a excruciante angústia de abandono (próprios da Perturbação Borderline) melhoraram muito e continuam a melhorar, mas não desapareceram, como é próprio da doença.  
A Mentira Patológica e a Síndrome de Munchausen são doenças comportamentais, se assim se pode dizer. Os comportamentos que as caracterizam deixaram de existir há muitos meses. É discutível dizer que está curada. Mas não apresenta manifestações das doenças.  
Vejamos a seguinte situação. Imaginemos o caso de um indivíduo que esteve dependente do álcool e abusou do seu consumo, digamos, entre os 20 e os 40 anos. Depois deixou de beber. Hoje tem 80 anos e continua sem beber. Devemos considerar que, uma vez alcoólico, será alcoólico toda a vida, beba ou não beba? As suas fragilidades e a predisposição para beber não desapareceram, mas o consumo já não existe. Está curado ou não? 
Voltemos ao caso da Maria. Depois de muitos meses sem mentiras nem comportamentos factícios, ela foi vítima de circunstâncias muito adversas da sua vida, que lhe provocaram muito sofrimento e um episódio depressivo. 
Noutros tempos, em situações similares, a saída mais fácil seria voltar àqueles comportamentos. Mas desta vez não o fez. Como um alcoólico que renuncia à bebida ou um toxicodependente que renuncia à droga, a Maria aguentou tudo “a frio” e renunciou aos ditos comportamentos. Mostrou que tinha superado as duas doenças. Mas o preço a pagar foi uma depressão grave e uma tentativa de suicídio que requereram um internamento. 
Neste momento está bem e sem qualquer sintoma. Até quando? Ninguém pode dizer. Mas temos os dois uma crença e uma convicção muito fortes de que será para sempre. 

Na sua prática clínica, já se deparou com algum caso de Transtorno Factício Imposto a Outro, também conhecido como Síndrome de Munchausen por Procuração ou Síndrome de Munchausen by proxy? 
Não. Nunca aconteceu.  

A Mentira Patológica ainda não é reconhecida formalmente como doença. Quais implicações isto traz para o diagnóstico e o tratamento? 
Estou convencido de que quando for reconhecida formalmente como doença, ela será mais conhecida e o diagnóstico será mais fácil. Depois será necessária uma atitude mais tolerante e mais compassiva por parte dos terapeutas e de todas as pessoas que lidam com a pessoa afetada pela doença. 

Numa das passagens mais bonitas do livro, escreve que a escuta atenta e empática facilita a verbalização e proporciona ao paciente a oportunidade de ser efetivamente compreendido. Considera que esta é a base do trabalho em qualquer psicoterapia? 
Penso que essa é uma base fundamental. Mas também são requeridas outras atitudes: paciência, empenho, dedicação, empatia e compaixão. 

Carl Rogers (1902–1987) via a relação paciente–terapeuta como o elemento central e mais transformador no processo terapêutico. Na visão deste psicólogo humanista, o terapeuta não é «o especialista que cura o paciente», mas um facilitador do crescimento pessoal. Concorda?
Plenamente. Uma psicoterapia é um trabalho conjunto de duas pessoas, que cooperam, cada uma com as suas funções específicas, mas em que a responsabilidade deve ser sempre assumida pelo terapeuta.  



Como decorreu o processo de coautoria? Quais foram os maiores desafios na escrita conjunta?
 

Aquilo que viria a ser o embrião de um possível livro (antes ainda de pensarmos nisso) foram algumas mensagens e e-mails que íamos trocando. A Maria respondia a questões que eu lhe colocava e ia correspondendo aos pedidos que eu lhe fazia para colocar em palavras o que sentia. Da minha parte estudava as doenças e tomava notas para as compreender melhor.  
E quando começámos a perceber que podíamos dar corpo ao processo terapêutico através de um livro, falámos sobre isso e fomos amadurecendo a ideia. 
Houve depois uma altura em que percebemos que a própria existência de um livro poderia servir de incentivo para lutarmos ainda mais pela recuperação. E, assim, livro e psicoterapia passaram a funcionar como aliados, digamos assim, um do outro. 

Espera que o livro contribua para reduzir o estigma associado a doenças mentais particularmente graves, pouco conhecidas e compreendidas? 
Esse foi um dos objetivos. E, particularmente da parte da Maria, o seu grande objetivo foi ajudar outras pessoas que sofriam como ela, dar-lhes esperança e incentivá-las a não ter medo de pedir ajuda. 

Que tipo de comentários ou feedback tem recebido dos leitores e da comunidade clínica? 
Os comentários têm sido excelentes e muito gratificantes.  
Mas há um pormenor que lamento. Recebemos convites de programas televisivos de grande audiência para uma entrevista. Seria uma forma gratificante de darmos a conhecer o livro e o caso e de podermos ajudar muitas pessoas. Mas como a Maria, para preservar a sua privacidade e a da sua família, pediu para não aparecer e para a entrevista ser só comigo, não aceitaram. Resultado: desfizeram o convite! Este é um exemplo do que disse atrás: que não é popular falar de casos reais de uma forma realista e não espetacular. 
Há programas que preferem outras coisas. Por exemplo: casos falsos de falsas recuperações, mas que são mais espetaculares. Eu especifico melhor: as pessoas com Síndrome de Munchausen procuram apenas uma coisa: a atenção e os cuidados dos médicos e/ou de familiares e amigos; mais nada. Mas há outras que, apresentando casos parecidos, têm como objetivo ter algum tipo de ganho material: pensões, subsídios, donativos, venda de livros, divulgação da imagem nas redes sociais e parcerias com marcas e empresas. Isto corresponde a uma entidade clínica chamada “Simulação”. 
Estes casos, que por vezes divulgam falsas recuperações (porque nunca estiveram doentes), são mais apelativos; e, cá está, vendem mais e dão mais audiências. 

No seu livro Nascemos Frágeis e Recebemos Ordens para Sermos Fortes, escreve sobre o transtorno de personalidade narcisista. Quais são as principais causas e como se procede ao tratamento? 
Temos de ter em conta uma componente genética na génese das doenças mentais. Nesse sentido alguns estudos têm sugerido a importância desse fator em várias características narcísicas. Mas os fatores interpessoais têm um peso grande, que devemos valorizar.  

Todos nós precisamos de ser investidos narcisicamente. Isto significa vivermos a experiência de sermos importantes e especiais para alguém (os nossos pais ou seus substitutos e, depois, as pessoas mais significativas da nossa vida), sermos elogiados e sentirmos que somos reconhecidos e valorizados por sermos como somos. 
Estas experiências contribuem para desenvolvermos uma boa autoestima. Quando as coisas acontecem ao contrário, a autoestima será frágil e, quando sujeita a ataques ou feridas, levará ao desenvolvimento de características narcísicas. 
Há dois grandes grupos dessas características, que levam a dois modos diferentes de funcionamento narcísico.  De um lado temos aquelas pessoas que têm sentimentos de inferioridade, são discretas e conformam-se às opiniões e interesses dos outros, de modo a evitarem serem criticadas e, por conseguinte, sentirem a sua autoestima ferida. Estas, se forem humildes e quiserem muito mudar e melhorar, podem de facto melhorar. 
Do outro lado temos aqueles indivíduos, mais propriamente chamados narcísicos, que são arrogantes, vaidosos, que precisam de ser o centro das atenções e que diminuem e desvalorizam os outros e não têm empatia pelo seu sofrimento. Estes são mais difíceis de tratar porque geralmente não querem, sentem que não precisam e não têm a humildade necessária para o efeito. 

António Coimbra de Matos (1929–2021) assinou o prefácio desse livro. Pode falar um pouco sobre a influência que esta figura incontornável na história da saúde mental em Portugal exerceu na sua formação e carreira? 
Nunca trabalhei diretamente com António Coimbra de Matos, mas aprendi muito com ele, inspirei-me muito com as suas ideias, sempre o admirei e sinto-me eternamente grato pela generosidade que teve em prefaciar esse livro e apresentá-lo no seu lançamento. 

Há mais de 30 anos que trata da Perturbação Borderline. «Os borderline são os doentes de quem ninguém gosta, aqueles que muitos procuram evitar.» Esta frase foi escrita por si no livro Reféns das Próprias Emoções. Mesmo no meio psiquiátrico, os pacientes com este transtorno de personalidade continuam a ser alvo de estigma? 
Embora menos, ainda continuam a ser alvo de estigma. 

Na obra Uma Luz na Noite Escura, debruçou-se sobre o tema da solidão. Quais considera serem os principais fatores psicossociais e culturais que explicam o aumento da solidão entre jovens adultos em Portugal? 
Reconheço muitas qualidades nos portugueses. Apesar disso, considero que, de uma maneira geral, os portugueses têm uma baixa autoestima e, em alguns aspetos, são invejosos. Por outro lado, a ilusão de comunicação que as redes sociais trazem, contribui para que nos sintamos mais sós.  Todos estes fatores, e mais outros que estudos sociológicos possam mostrar, contribuem, na minha opinião, para aumentar o sentimento de solidão que nos afeta. 

Em Lugares Escondidos da Mente, escreve sobre o lado mais sombrio da mente humana, descrevendo indivíduos com transtorno de personalidade psicopata. A psicopatia é curável?
Não.  

Segundo estudos e investigações de Robert D. Hare (n. 1934), um dos mais respeitados investigadores sobre o tema, em cada 100 pessoas, pelo menos duas são psicopatas. Como podemos identificá-las e proteger-nos dos seus comportamentos? 
Além desses 2 %, há muito mais pessoas que, não preenchendo todos os critérios para que as consideremos psicopatas, têm muitas das suas características.  
O problema é que, de início, podem ser indivíduos encantadores, atenciosos e que nos dão a sensação de que somos importantes para eles. Outro problema é irmos perdoando algumas das suas imperfeições. Outro problema é fazerem-nos sentir que precisamos deles. E por aí fora, até ficarmos presos nas suas garras. E nessa altura já é tarde.  
Só há uma forma de nos protegermos deles: contacto Zero! O problema é quando as pessoas preferem acreditar neles e optam por continuarem a ser destruídas. 

E quando não é possível evitar o contato? Muitos líderes empresariais exibem traços psicopáticos e usam o seu poder para manipular, praticar mobbing e adotar outros comportamentos abusivos. Como alguém pode se resguardar quando o psicopata é… o próprio patrão? 
O problema é o poder que esses indivíduos possuem. Esse é um dos seus grandes objetivos, e para o conseguir preparam o terreno para esse fim, representando, durante anos se necessário for, o papel de funcionário exemplar, subjugando-se aos próprios chefes e aliando-se a eles para ganharem o estatuto de “colaborador de confiança”. 
Claro que eles atuam sem testemunhas, de modo a não deixar provas, o que torna tudo mais difícil. Mas, suponhamos que a presa (é assim que devemos colocar os termos) filma ou grava as ações psicopáticas do chefe. A lei protege-os porque o som ou as imagens obtidas não têm validade jurídica. Ainda assim, penso que é fundamental fazê-lo.  
Sempre que possível, seria fundamental prevenir. Como? Não dando confiança, não falando de si nem da sua vida privada. A presa deverá tentar perceber se é a única. Se for, aconselho a que comece por falar apenas a alguém da sua maior confiança. Se não for, deverão juntar-se numa ação comum. Em qualquer dos casos deverão denunciar o caso ao Sindicato e à APAV. 
Mas, o mais eficaz seria haver legislação que protegesse os trabalhadores e punisse severamente os criminosos. Infelizmente ainda estamos longe da aplicação desse direito. 

Se alguém estiver a ser alvo de assédio moral no trabalho, por parte do chefe ou de um colega, como pode salvaguardar a sua saúde mental? 
Afastando-se do local de trabalho. Como? Usufruindo de um direito que os trabalhadores conquistaram: através de uma baixa médica. Na minha opinião, mais vale prevenir do que remediar. Tenho visto pessoas completamente destruídas (profissional, pessoal e familiarmente), perante o olhar condescendente e sádico desses chefes, que depois se passeiam sem culpa nem remorsos. 

Em maio deste ano, esteve na Madeira a dinamizar a formação ‘Princípios de Saúde Mental’, destinada a docentes que lecionam na ilha. Em que consistiu esse evento?
Tratou-se de uma iniciativa do Sindicato dos Professores da Madeira, que, aliás, levou a uma iniciativa idêntica do Sindicato dos Professores dos Açores.  
O principal objetivo foi contribuir para melhorar a literacia em saúde mental dos formandos, através da clarificação de conceitos, e a partilha de ideias várias sobre a personalidade, o caráter, o temperamento, o narcisismo e a autoestima, as emoções e sua regulação, o bullying e o burn out dos professores.  


Nasceu e cresceu nos Açores. Eu, na Madeira. Existe evidência científica de que a vida insular implica desafios específicos para a saúde mental? Estou certo ao afirmar que nas regiões insulares, observa-se um risco mais elevado de suicídio e de consumo problemático de substâncias aditivas?  

O risco aumentado de suicídio, a solidão e o consumo grave e preocupante de substâncias são reconhecidamente graves nas duas regiões. Creio que desde os finais dos anos 70, com a televisão e a Universidade dos Açores, houve uma maior abertura ao exterior, que, com o turismo, se tem vindo a desenvolver.  
A impressão que tenho, pelo menos no que diz respeito a São Miguel, nos Açores, é que as pessoas tornaram-se extraordinariamente simpáticas e acolhedoras.  
E o orgulho em sermos ilhéus é qualquer coisa que contribui para melhorar a nossa autoestima.  


Na sua intervenção no TEDxLisboa 2023, abordou a ideia de ‘cura pelo amor’. Qual considera ser a importância do amor, em suas múltiplas manifestações, no contexto do tratamento e da prevenção das perturbações mentais? 
A empatia e a compaixão pelo sofrimento humano são instrumentos terapêuticos de enorme valor. Das várias formas que o amor pode tomar, o amor terapêutico, chamemos-lhe assim, pode ser transformador e salvar a vida das pessoas. 

Quais os últimos livros de ficção que leu? 
Costumo ler vários ao mesmo tempo. Agora estou a ler A nuvem no olhar, de João de Melo e Biografia não escrita de Martha Freud, de Teolinda Gersão. 

Que escritores admira particularmente? 
Saliento Carl Sagan, Kafka, Irving Yalom e Bill Bryson, para falar apenas dos primeiros nomes que me ocorreram (e misturando ficção com não ficção).  
E há outros que, embora não os conheça bem, admiro muito, como escritores talentosos, mas sobretudo pelas pessoas que intuo que são: João de Melo e Teolinda Gersão. 

Nos seus livros, a linguagem é sempre acessível e próxima do leitor. Quando nasceu a sua paixão pela escrita?
 
Não foi desde pequenino, e até acho que não tinha jeito para escrever. Apesar disso, lembro-me que, na Escola Primária, ganhei um prémio literário. Infelizmente, não me recordo de nenhum pormenor relacionado com essa situação.  
Só em 2005, aos 44 anos, escrevi o meu primeiro livro, As faces do Inconsciente. Depois estive 12 anos sem publicar. Pensei que aquele primeiro seria o único livro que iria publicar. Mas depois, inspirado por alguma ficção que recomecei a ler, tentei escrever um romance. Fiz duas tentativas, mas rapidamente percebi o quão difícil é essa tarefa. Mas creio que, apesar disso, surgiu o entusiasmo. E a partir daí voltei a publicar, desta vez O Inconsciente está no cérebro. E, depois, nunca mais parei. O “bichinho” já está entranhado. 

Como concilia a carreira de psiquiatra com a de escritor? 
O grande desafio, e a maior dificuldade que sinto, é na gestão do tempo. Por vezes penso que, caso tivesse tempo, poderia escrever bastante mais. Seja como for, os conhecimentos e a experiência que tenho adquirido como psiquiatra e psicoterapeuta, bem como tudo o que tenho aprendido com os meus pacientes, têm contribuído muito para desenvolver a minha tarefa como autor. 

Tendo já publicado sete obras, possui atualmente algum projeto ou ideia para o desenvolvimento de um novo livro? 
Tenho ideias. Há temas sobre os quais tenho estado a pesquisar e a tomar notas e que poderão dar origem a novos livros: os medos e os sonhos. Vamos ver. 

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