Publicado há dois mêses pela Gradiva (a 25 de Junho) e lançado em Lisboa a 10 de Julho, o mais recente livro do cientista português a viver em Inglaterra João Maqueijo, Bifes Mal Passados, entrou (já!) na sua 5.ª edição. Parece que este foi e continua a ser um dos livros de férias de muitos portugueses.
Excerto:
«A grande peculiaridade do sistema são os sotaques.
Acabado de aterrar em Heathrow para ir estudar física em Cambridge, de imediato começou o assédio.
Logo no aeroporto, munido do inglês que se aprende na escola em
Portugal, fui recolher uma caixa de livros que ia à parte, e o rapaz do
armazém pediu‑me algo que em português ficaria:
— Cuniu prant
ind sai, plie? e porra se percebi patavina. Acabámos a comunicar por
gestos (pedia‑me para escrever o nome em maiúsculas e assinar ao lado,
«can you print and sign, please»).
No «College», onde vivi 4 anos, o calvário prosseguiu.
Estariam os porteiros de chapéu de coco e papillon a falar esquimó
comigo em vez do idioma que me haviam ensinado? E o estranhíssimo «Mr.
Rick», uma figura saída de um romance de Dickens, corcunda e rubicundo
(era ele que me dispensava a bolsa), estaria a gozar com a pronúncia da
rainha quando afirmava, pedante, as vogais bem abertas, «We, the
British, like our food piping hot»? E falariam os Dons (os professores)
com uma cenoura analmente inserida, tal era a sobranceria do seu palrar,
tanto em conteúdo como em entoação? Uma vez um «tutor» perguntou‑me
durante um «jantar formal»:
— Mr. Magueijo, aaar ieuuu ree‑prau‑diuu‑cin?
se me estava «a reproduzir», ou seja, se tinha filhos — que maneira de
formular a questão (há em Cambridge uma enorme discriminação contra os
heterossexuais).
O que quer que aquela gente falasse, uma coisa
era certa: não era uma única língua, e, de facto, frequentemente não se
entendiam entre si. Só que as variações não eram regionais, como são os
sotaques em Portugal, mas sim moduladas pela classe social, com
divisões e subdivisões gongóricas, prenhes de significado infinito para
eles sem que a gente entenda bem porquê, mas veja‑se como George Orwell
descrevia o seu pedigree:
«I was born to a family of the lower
upper middle class», uma família da «classe média baixa‑alta », e que
raio de porcaria seria esta?
À medida que a minha estadia se
alongava, o mistério descodificava‑se: havia ali uma estratificação
social sem par no resto do mundo, onde pessoas de diferentes classes não
se falavam, ou se o faziam não se entendiam, e se odiavam e temiam
mutuamente.
Como naquela ocasião em que certo Sensei (mestre)
japonês decidiu organizar um torneio de karaté entre o clube da
Universidade de Cambridge e o dos meninos de Eton, a escola particular
mais cara e exclusiva do país, na falsa impressão de que em Cambridge,
tal como em Eton, aquilo era tudo, olha, se calhar compinchas do conde
de Sandwich. E, de facto, para os estrangeiros como eu era tudo igual ao
litro, mas para os ingleses era a terceira guerra mundial. Havia um
gajo do Norte, filho de ex‑mineiros de carvão agora no desemprego, que
era uma besta a desancar e já andava a esfregar as mãos para ir arrear
nos putos queques.
Esteve‑se na dúvida se chamaríamos uma
ambulância logo à partida. No fim decidiu‑se que a mui nobre e vetusta
Universidade de Cambridge seria representada exclusivamente por
estrangeiros, ou aquilo daria uma sarilheira da grossa.
E no
meio desta selva social a grande ferramenta de divisão são os sotaques.
Claro que há classes sociais em todo o lado, mas em Inglaterra tu abres a
boca e vomitas uma etiqueta de origem social comprovada. No café chega
um senhor e pede «Cune oi av uã n’ameiricaaanao» e tu pensas: «Bem, este
nem debaixo de água
escondia que é da classe operária.» Mais ao
lado está o Little George na cadeirinha de bebé a fazer uma birrinha,
grita não sei quê à mãezinha e tu pensas, coitado do Little George, tão
pequenino e já é da classe média baixa‑alta.
Um senhor da BBC
telefona a perguntar‑te coisas sobre a velocidade da luz e o Universo e
dizes tu aos teus sábios botões: «Este não precisa de me informar que
estudou em Eton, um cartão de visita é desnecessário.» É que nem as
marcas de casta na Índia são tão explícitas. Pelo menos não se notam ao
telefone.
Isto tem implicações desastrosas para a mobilidade
social, que é baixíssima, até porque não há nada mais ridículo do que
imitar o sotaque de uma classe alheia. É‑se logo apanhado e fica tudo a
rir. Por exemplo, uma companhia de comboios teve a brilhante ideia de
mandar os revisores a «aulas de elocução», como eles dizem
eufemisticamente. Tiveram de suspender o programa a grande velocidade:
andava tudo às gargalhadas no comboio, era óbvio para os passageiros que
aquilo era mas era uma cambada de labregos a fingir que falavam como o
Príncipe Charles, até eu me ria e sou estrangeiro.»
Lê a sinopse de Bifes Mal Passados, clicando aqui ou aqui.
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