sexta-feira, 25 de abril de 2014

«Autobiografia», de Thomas Bernhard

Editora: Sistema Solar
Data de Publicação: Jan. 2014
N.º de Páginas: 544

Da bibliografia do escritor austríaco Thomas Bernhard (1931-1989) consta romances, peças de teatro e ensaios. Cinco desses livros, (1) A Causa (Die Ursache, 1975), (2) A Cave (Der Keller, 1976), (3) A Respiração (Der Atem, 1978), (4) O Frio (Die Kälte, 1981) e (5) Uma Criança (Ein Kind, 1982), são de cariz autobiográfico e foram coligidos todos num só volume, intitulado Autobiografia. São mais de quinhentas páginas que traçam a primeira vintena de anos da vida daquele que é considerado um dos mais importantes escritores germanófonos da segunda metade do século XX. São esses relatos narrados na primeira pessoa que a editora Sistema Solar publicou recentemente.
As origens, a infância e adolescência perturbantes marcaram profundamente o carácter e intelecto do autor, como é revelado no primeiro livro, que divide-se em duas partes: Grϋnkranz e Tio Franz. Na primeira, o narrador tem treze anos e relata o quotidiano no primeiro dos internatos em que estivera, em 1943. Os constantes bombardeamentos na cidade de Salzburgo, as lições de violino com o professor Steiner e a rigidez disciplinar que ele e os colegas eram sujeitos pelo director desse internato nacional-socialista, nazi, são dados a conhecer ao leitor, assim como a confissão que fora nessa idade precoce que pensara ininterruptamente no suicídio. Na segunda parte do primeiro volume, sabemos que Franz fora um sacerdote católico que substituiu o austero director, contudo «agora cantávamos cânticos religiosos quando antes tínhamos cantado canções nazis» e «crescemos entalados entre o catolicismo e nacional-socialismo e fomos por fim esmagados entre Hitler e Jesus Cristo», revela Bernhard. Antes de passarmos para o segundo livro, somos apresentados à pessoa mais importante na vida do narrador: o avô, com quem dava passeios e por quem era instigado a observar a Natureza e a psique humana.
Em A Cave, é-nos contado a sua permanência como aprendiz numa mercearia situada no bairro de Scherzhauserfeld, um dos bairros mais mal-afamados de Salzburgo. Em vez de ir para o liceu o rapaz de dezasseis anos foi para esse que viria a tornar-se o seu único «refúgio». Se o seu avô ensinara-lhe a observar as pessoas a grande distância, Podlaha, o dono do estabelecimento comercial, confrontava-lhe directamente com elas, e assim foi também esse homem um grande professor para ele. Nessa altura ele retoma com as lições de música, uma das paixões da sua vida.
No livro escrito em 1978, Bernhard descreve a sua estada no hospital de Salzburgo, quando lhe é diagnosticado pleureisia. Este será apenas o primeiro de muitos internamentos a que ele será sujeito. Aos dezassete anos ele lida com a sua doença grave e com as mortes do avô (em 1949) e da sua mãe (em 1950), que o abalam profundamente. A ligação ao avô era tão forte que após o avô morrer ele diz ter começado uma segunda existência. Thomas ainda estava em luto quando é transferido do hospital para uma casa de repouso para convalescer (mas afinal era um lugar para onde ia os casos mais graves, «casos dados como perdidos»). Já no sanatório ele descobre a leitura, subitamente como algo determinante para a sua vida: «Com a leitura venci eu também os abismos que aí se abriam a todo o momento e pude salvar-me dos estados de espírito que só visavam a destruição.»
No quarto volume autobiográfico, Thomas Bernhard faz um relato minucioso da sua estadia no sanatório para tuberculosos (em tom irónico relata como um exame seu fora trocado e um diagnóstico grave revelado) e conta o seu “despertar para a vida”, que o salvou da morte que já o “tentava” desde há muito.
Em Uma Criança o autor retorna aos seus oito anos, lembra o quanto a inexistência da figura paternal moldou a sua personalidade e descreve a relação bastante conflituosa com a mãe, que o repudiava.
Autobiografia é um livro de não-ficção que se lê como um romance. Para quem não conhece o autor e a celeuma que os seus escritos e entrevistas provocaram na Áustria, enquanto era vivo, a leitura deste livro é um abrupto abanão na nossa consciência e reflexão para assuntos como Educação, Pátria, Política, Religião, Medicina, Morte, Suicídio. Com uma técnica narrativa original, provocadora, irónica, por vezes musical, por vezes bruta, o autor consegue prender ininterruptamente o leitor às páginas da sua vida. Nietzsche escreveu que aquilo que não nos destrói, nos fortalece; podemos afirmar que os infortúnios (guerra, doenças, miséria, etc.) por que Thomas Bernhard passou o moldaram num ser mais resiliente e maduro, e essas experiências do degredo impregnaram toda a sua natureza e índole. Uma nota para a tradução rigorosíssima de José A. Palma Caetano.

1 comentário:

Manuel F. disse...

Não conhecia este autor. Muito interessante você escrever sobre a vida dele. Gostei.