quinta-feira, 9 de agosto de 2012

«A Lucidez do Amor», de Tânia Ganho

Editora: Porto Editora
Ano de Publicação: 2010
Nº de Páginas: 320
O amor de Consuelo Suncin Sandoval e Antoine Saint-Exupéry durou em vida entre 1931 a 1945 e é um testemunho indelével sobre esse sentimento que Camões descreveu como fogo que arde sem se ver. Poucas horas depois do primeiro encontro, eles sabiam que iriam ter-se como esposa e marido. Consuelo era uma mulher bela e frágil, e uma artista de duas belas-artes, a pintura e escultura. Ele era piloto de aviação e os dois viajaram por muitos lugares, qual andarilhos sem destino certo. Exupéry era aventureiro e uma eterna criança, pois gostava de brincar com o perigo, com acrobacias que desenhava nos céus a bordo da carlinga de qualquer objecto voador. Muitas vezes a mulher do futuro escritor de O Principezinho ficava só, confinada ao abandono. Muita turbulência fez parte do percurso do casal, pois Exupéry despedia-se dela, voltava e partia novamente para os destinos a que a sua profissão o obrigava. Todavia, o amor que sentiam um pelo outro perdurou, enquanto houve fogo.

Esta história poderia bem ilustrar e/ ou inspirar a escritora Tânia Ganho para a escrita de A Lucidez do Amor. No romance é-nos apresentado sob verbos, adjectivos e acções, conjugados ora no passado, ora no presente da narração, quatro personagens (centrais) e quatro panos de fundo: Paula, Michael, Binta e Álvaro, e França, Tajiquistão, Guiné Bissau e Porto Santo. O dia 18 de Maio de 2006 marca o ponto de entrada do leitor na história e é precisamente neste dia que o marido de Paula se despede dela e de Artur, o filho de ambos, que tem pouco mais de 3 semanas de vida. Michael é de nacionalidade francesa e tem a mesma profissão que teve Richard Bach (além de escritor): é piloto de aviação da Força Aérea.
Os dias seguintes à partida de Michael para a guerra do Afeganistão são balanceados com a incerteza da do seu regresso, com os vários medos de Paula: de viver numa «sombria» e «triste» aldeia de França; a imaginação assombrosa que a assola em relacção aos seus vizinhos; o não se sentir bem em relacção ao corpo em que habita, pois o nascimento do filho alterou-o; o de se ver à volta com biberões e chuchas, sendo o seu desejo que estes sejam substituídos o quanto antes por pinceis, lápis, tintas e blocos de papel.
Paula é ilustradora freelancer e trabalha em casa por opção. As rotinas e horários não fazem parte do seu ser, o mesmo que foi criado na cosmopolita Lisboa. Mas isso era antes. Agora ela é mãe, ama e protege o seu filho, agora ainda mais. Tem de amá-lo por dois.
Mesmo com a chegada da sua mãe para a ajudar e fazer companhia durante a ausência de Michael, Paula sente o seu corpo e mente se desfalecer, qual sentimento demente. Sente uma amálgama de sentimentos: abandono, revolta, ansiedade, saudade. Os desenhos e aguarelas são um escape para esta mulher: «É o trabalho que lhe insufla ar nos pulmões e oxigena a mente.» (p.260)
O telefone quando toca dispara o coração de Paula. Quando não toca tem o mesmo efeito taquicardíaco. Do lado de lá, da guerra, o piloto descreve à mulher o seu quotidiano, os seus voos, os seus perigos e a saudade que deles tem. O que Michael não transmite nos telefonemas é o grau elevado de impotência que sente, por ela e o filho estarem a ser sacrificados com a sua ausência.
Em paralelo e em simultâneo é-nos contado a história de Álvaro e Binta, os pais de Paula. Ele é português, ela africana. Dois seres opostos em costumes, em idealismos, em cor, mas unidos pelo amor que manifestou-se por entre as sombras da Guerra Colonial. Estes dois personagens carregam em si segredos e fardos que o tempo jamais poderá diluir. São eles um testemunho de uma geração que sobreviveu a uma guerra.
A solidão desperta em Paula recordações não muito longínquas, que se desenrolaram em catadupa: a primeira vez que viu Michael em Porto Santo - uma das quatro ilhas que compõem o Arquipélago da Madeira; as viagens constantes entre Lisboa e França; os meses que viveram na Alemanha; o casamento; a gravidez. Isto tudo em apenas 2 anos.
Aproximando-se os últimos dias da missão de Michael no Tajiquistão, as ansiedades e superstições vêm ao de cima. Nesses dias Paula tem conhecimento de notícias que pressagiam mau augúrio e sente na pele mais do que nunca, o que é ser esposa de um piloto. Para ela é como ter mais uma profissão.
Se o fim de Michael é igual ao do seu compatriota - não-ficcional - Saint-Exupéry, isso só é dado a conhecer nos últimos capítulos, ricos em suspense.

Só passando por sacrifícios é que alguém pode revindicar e compreender a dádiva de ter de volta o que por tanto lutou e sofreu, neste caso, o amor. Esta é uma mensagem deste livro capaz de agradar os amantes da aviação, os heróis que combateram e combatem nas guerras e a todos os leitores comuns. É um livro que pode ser nostálgico, mesmo não sendo escrito em tom melodramático. Apenas porque pode despertar emoções de que se guardou na memória inconscientemente.
A par de uma escrita cuidada, lacónica (em prol dos capítulos curtos) e rigorosa (com detalhes credíveis sobre os temas abordados), temos indubitavelmente uma narrativa de cariz pessoal. Todo o escritor quando escreve um livro, deixa sempre uma marca – já li algures esta afirmação e sublinho.
No envoltório que adorna a capa dura (um grande pró e pormenor da edição da Porto Editora) deste livro, vem estampado uma foto com uma mulher a fugir do fogo/ guerra para sobreviver, metaforicamente tal como Paula faz, sobreviver.
Vislumbra-se uma mulher de «um metro e setenta, esguia, altiva, de pele morena e cabelos encaracolados (…)» (p.181)
Outro pormenor é que a mulher está a olhar para trás, para as explosões que deflagram, mas o sentido do seu corpo é em frente. Encontro um paralelo aqui também…
Esta mulher é Paula. A capa deste livro foi escolhida ao pormenor por Tânia Ganho, uma escritora perfeccionista, autocrítica, que não deixa nada ao acaso. É nos detalhes mais subtis de um livro, que o leitor observador e sensível conhece um escritor.
Permanecendo ainda na capa, o título do livro dá azo a más interpretações, principalmente por quem os escolhe e compra cingindo-se pelos títulos. Outros tantos títulos poderiam ter este A Lucidez do Amor, onde encontra-se citações destas:
«A saudade é palpável, tangível, deixa um travo na língua e um arrepio na pele. Pesa no espaço que os separa como uma entidade própria, com textura, dimensões, personalidade. Corrói-os, enerva-os, erode-os.» (p.71)
«Para que uma relacção entre duas pessoas aparentemente opostas resulte (…) é preciso que cada uma delas descubra os pormenores que tornarão o seu mundo cativante aos olhos da outra.» (p.212)
O que sublinhei com mais vinco, acho não ter permissão de incluir aqui, até porque seria cruel roubar e colar de bandeja o último parágrafo do romance.
O livro recomenda-se. Não é uma obra de literatura maior, nem foi escrita com esse intuito, mas faz-nos entrar numa história que nos parece credível, com personagens convincentes e fechamos o livro ainda com um sorriso espontâneo. Raros livros têm este poder.

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