A 20 de Janeiro próximo, chega às livrarias quatro livros de Clarice Lispector, escritora brasileira nascida em 1920 e falecida a 1977.
Numa celebração continuada da mais icónica, disruptiva, reverenciada e ousada escritora brasileira do século XX, a editora Companhia das Letras anunciou a publicação da sua obra completa.
Escritos ao longo de quase quatro décadas, desta autora intemporal estão publicados no Brasil cerca de vinte livros de ficção (entre romance e conto), vários volumes de crónicas, correspondência e artigos, e cinco livros infanto-juvenis. Autora de uma obra de incomparável relevância e acolhida nas mais prestigiadas editoras de todo o mundo, Clarice Lispector é um ícone da literatura.
Relembrar que a biografia de Clarice Lispector, À Procura da Própria Coisa, da autoria de uma das maiores especialistas na vida e obra de Clarice, encontra-se publicada desde Janeiro de 2023 pela editora Narrativa.
Há livros que desviam para sempre o curso de uma literatura inteira. Não o fazem sozinhos - ora ecoam as vanguardas da sua época, ora rasgam preceitos vigentes; em casos mais raros, antecipam um certo futuro. É assim com Perto do coração selvagem, romance de estreia de Clarice Lispector. Publicado no ano em que a escritora completou 23 anos, conta a história de Joana: desde a infância marcada pela morte do pai e pela solidão do colégio interno, até à idade adulta, com um casamento longe do sonhado, a maternidade, a paixão por um homem enigmático e, por fim, uma inevitável dispersão do eu, da identidade, do rumo da vida.
Joana é uma mulher supremamente livre, não confinável aos limites do seu tempo, indisponível para conter a sua voz, o seu pensamento ou o seu desejo vital, determinada a não dar passos que não sejam os seus rumo ao coração da existência. Enquanto acedemos à intimidade desta criação de Clarice - por entre admiráveis epifanias e monólogos interiores - chegamos mais perto da genialidade da sua criadora.
Dialogando, mesmo se inadvertidamente, com Virginia Woolf, Hermann Hesse ou James Joyce, na reflexão sobre as inquietações da modernidade, este romance subsiste como um clarão na literatura em língua portuguesa, valendo a Clarice Lispector toda a admiração dos leitores, da crítica e dos pares.
Excerto
«É curioso como não sei dizer quem sou. Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. […] Sinto quem sou e a impressão está alojada na parte alta do cérebro, nos lábios — na língua principalmente —, na superfície dos braços e também correndo dentro, bem dentro do meu corpo, mas onde, onde mesmo, eu não sei dizer.»
Revisitação de pontos centrais no universo literário de Clarice Lispector, Água viva é pura incandescência da inventividade e da linguagem. Uma enigmática voz feminina - toda audácia, delírio e sedução - conduz a narrativa. Esta mulher, cujo nome não sabemos, deseja mudar de ofício e tornar-se escritora. Ela é um eu que reivindica a ocupação de um espaço e de um tempo, que se dirige a um tu misterioso e que propõe o ousado alinhamento de humanos e bichos, natureza e linguagem, rumo ao centro da vida, que Clarice perseguiu em todas as suas obras.
Contestando limites e sem cedências à convenção, este livro inaugura um espaço partilhado entre quem escreve e quem lê: nesta mulher, na sua inquietação ou na sua letargia, nas suas fraturas ou nas suas pulsões, reconhecemos uma humanidade em estado bruto. O tom fragmentário é contrariado por uma cadência de demandas e reflexões tão profundamente individuais como peremptoriamente universais. Um livro desconcertante, que oferece uma hipótese de fusão entre escrita e leitura, forma e tema, corpo e pensamento: radicalmente inovador, ao suspender as fórmulas de representação romanesca, e irresistivelmente transgressor, na exposição das costuras da ficção e da voz lírica.
Água viva é um triunfo de Clarice Lispector, que aqui ensaia uma nova escrita de si e do mundo.
Excerto
«Na minha noite idolatro o sentido secreto do mundo. Boca e língua. E um cavalo solto de uma força livre. Guardo-lhe o casco em amoroso fetichismo. Na minha funda noite sopra um louco vento que me traz fiapos de gritos. Estou sentindo o martírio de uma inoportuna sensualidade. De madrugada acordo cheia de frutos. Quem virá colher os frutos de minha vida?»
Conhecemo-la pelas enigmáticas iniciais - o nome, nunca chegaremos a descobrir. G.H., independente e segura das suas escolhas, é uma escultora bem relacionada nos círculos do Rio de Janeiro. Numa manhã igual a outras, o seu mundo vai expandir-se depois de se pulverizar. Primeiro, a sua empregada despede-se; em seguida, G.H. decide limpar o quarto que ela habitava: um espaço vazio e imaculado. É aí que acontece um encontro epifânico com uma barata que rasteja de dentro de um armário. Perante a visão do inseto, G.H. submerge num questionamento existencial agudo, rasga fronteiras, põe em causa o seu lugar no universo e, num sentido mais extremo, a sua própria humanidade.
Tendo como núcleo uma experiência-limite e como clímax um episódio chocante, A paixão segundo G.H. é o teatro anatómico da condição humana: disseca pulsões primordiais (desejo, medo, transgressão), ao mesmo tempo que convida o leitor à travessia de um mundo oculto. Depois da descida ao inferno, e por entre as ruínas daquilo em que antes acreditava, irrompe, afinal, o gesto humano mais elementar: o combate pela vida.
Um dos mais célebres romances de Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. é um prodígio da imaginação e do engenho literário. Uma história tão inquietante quanto luminosa.
Excerto
«Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. […] Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço […]. Minhas previsões me fechavam o mundo.»
Derradeiro livro de Clarice Lispector, Um sopro de vida é uma indagação sobre o sentido da existência e o ato de escrever em liberdade. Recorrendo a um artifício encantatório, a escritora coloca em diálogo um Autor e a sua personagem, a indefinível e esquiva Ângela Pralini, que já conhecemos de outro livro. Um homem e uma mulher, ambos escritores, que se contemplam e se questionam no reflexo um do outro. Ao meditarem sobre as suas crises criativas e o papel que lhes reserva o mundo fora das páginas, acabam por instalar a dúvida no leitor. Quem é criador e quem é criatura? Qual deles está mais perto da própria Clarice? Qual dos fios escolhemos acompanhar, a ficção, a ideia fictícia ou o universo único de uma escritora única?
Clarice Lispector trabalhou neste livro durante os últimos anos de vida, desvelando o intenso diálogo que se estabelece também entre a escritora e a sua criação literária. Publicado postumamente, Um sopro de vida ilumina a pulsação de uma escrita que não tem par na língua portuguesa, e permanece como legado de um projeto literário disruptivo, intemporal e sempre admirável.
Excerto
«Tenho medo de escrever. É tão perigoso. Quem tentou, sabe. Perigo de mexer no que está oculto — e o mundo não está à tona, está oculto em suas raízes submersas em profundidades do mar. Para escrever tenho que me colocar no vazio. Neste vazio é que xisto intuitivamente. Mas é um vazio terrivelmente perigoso: dele arranco sangue.»
Sem comentários:
Enviar um comentário