domingo, 22 de setembro de 2024

«Ressurreição», de Lev Tolstói

Editora: Presença
Data de publicação: Fevereiro de 2023
N.º de páginas: 472

Voskressénie, traduzido para português pela dupla Nina Guerra e Filipe Guerra, é o último romance escrito por Lev Nikolaevitch Tolstói (1828-1910), que juntamente com Anna Karénina e Guerra e Paz completa o trio dos grandes romances. A primeira edição da obra deu-se em 1899, contudo, a sua versão completa e sem censura foi só publicada em 1936.
Uma coincidência (in)feliz marca o arranque desta história, cujo um dos tempos narrativos decorre na década de 1880: Dmitri Ivánovitch Nekhliúdov, um jovem príncipe de regresso a Moscovo, é convocado pelo tribunal russo para ser um dos jurados de um caso que tem como arguida uma prostituta acusada de homicídio. Quando o aristocrata vê Máslova, a arguida, o seu corpo e mente paralisam. Em flashback, o seu tempo regride dez anos e lembra-se da jovem criada por quem se enamorara, desvirginara e abandonara, na casa das tias, em São Petersburgo. Essa recordação dolorosa, há muito fechada num compartimento diminuto do seu ser, faz ressurgir um sentimento de dupla culpa: a de que ainda hoje se ressente do que acontecera há uma década e pela que começara a rasgar as suas entranhas assim que viu Katiucha (o cognome de Máslova) num estado débil e tirano («eu sou a causa de ela ter enverado por este caminho»), a necessitar de um bom advogado para não ser deportada e executar trabalhos forçados na Sibéria.
Este homem, começa a dar o primeiro passo para se redimir e ao mesmo tempo, ao lidar de perto com um mundo desconhecido para si, o dos desfavorecidos e ostracizados pela sociedade e justiça, castigados pelas suas ideologias políticas ou simplesmente feitos presos por engano. Ao descobrir um mundo feito de corrupção, onde as cunhas e troca de favores são facilitados por funcionários justiçais de todos os níveis hierárquicos, o jovem russo começa a sentir repudiação, apatia e desprezo: «era insuportavelmente penoso para Nekhliúdov ter de se pôr do lado dos opressores para ajudar os oprimidos», «é terrível ver essa gente privada da principal característica humana: amor e compaixão recíprocos.» Chega à conclusão que «o único lugar conveniente para o homem honesto na Rússia actual é a prisão!»
Mas será que Máslova, por ter-se, numa forma de catarse, entregado a sua vida aos meandros da prostituição (enquanto tinha um sem fim de homens ela sentia a ser feita justiça, e enquanto o seu ódio era consumado, vingava-se do homem que tanto amara, mas que a ultrajara sem piedade) conseguirá aceitar a comiseração e perdão de Nekhliúdov? Será que conseguirá se desprender da sua némesis?
Neste melodrama, Ressurreição, Tolstói propõe acutilantes reflexões sobre temas indissociáveis da condição humana: o amor, o ressentimento, o perdão, a liberdade e a justiça. Através dos dilemas que atribuiu aos protagonistas, uma mulher a quem a justiça é cega, e um homem em busca de um sentido para a sua vida, o grande escritor e pensador russo traz à tona os conflitos humanos e sociais, trabalhados de forma profunda através de uma escrita muito visual, descritiva, que cria no leitor uma visão unidimensional dos personagens e ambientes do império russo do fim século XIX.
Um romance indispensável para os amantes de clássicos, em particular da obra tolstoiana.

Excertos
«Um dos mais vulgares e divulgados preconceitos consiste em afirmar que cada pessoa tem apenas as suas características determinadas, que existem pessoas boas ou más, inteligentes ou estúpidas, enérgicas ou apáticas, etc. Mas as pessoas não são assim. (…) As pessoas são como os rios: a água deles é igual, a mesma por todo o lado, mas cada rio ora é estreito, ao é largo, ora é rápido, ora calmo, ora límpido, ora turvo, ora frio, ora quente. As pessoas também. Cada qual transporta em si o germe de todas as características humanas e manifesta ora umas, ora outras (…)» (p. 229)

«Quando se reconhece que há coisas mais importantes do que o humanismo (…) será sempre possível que cometamos crimes contra os seres e não nos consideremos culpados.» (p. 407)

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