quarta-feira, 23 de outubro de 2019

«A Maldição do Marquês» é o título do novo romance histórico de Tiago Rebelo

O autor Tiago Rebelo tem um novo livro. Baseado em factos verídicos, A Maldição do Marquês (576 pp.; Edições Asa) é uma descrição imparável das intrigas palacianas e das lutas pelo poder; dos casamentos, das traições e das luxúrias na Corte de D. José; e também uma secreta e improvável história de amor capaz de sobreviver a todas as provações.

Sinopse
José Policarpo de Azevedo, criado de um dos fidalgos mais poderosos do reino, condiciona involuntariamente os mais dramáticos acontecimentos, que mudaram Portugal no século XVIII.
D. José reina, mas delega todas as decisões no omnipotente marquês de Pombal, que trava uma guerra de morte com a velha nobreza e os padres jesuítas.
O terramoto que arrasa Lisboa, a revolta dos índios brasileiros e o atentado contra o rei são oportunidades históricas aproveitadas com exímia mestria política pelo maquiavélico marquês de Pombal para ganhar definitivamente o poder.
Mas, a todo o momento, a obscura figura de José Policarpo de Azevedo intromete-se nos planos do homem forte do reino, que inicia uma longa e implacável perseguição para o capturar e executar.
O destino do único e misterioso sobrevivente do massacre dos Távora, mantido em segredo durante séculos, é finalmente revelado.

Primeiras páginas do livro:
«Quando, ao final da tarde, José Policarpo de Azevedo desembarcou no Paço Real da Ribeira, Lisboa estava a arder, ou o que restava dela. A cidade desabara à hora da missa e encontrava‑se em escombros.
Era sábado, 1 de Novembro de 1755, dia de Todos os Santos. O Sol erguera‑se na sua máxima força e a manhã radiosa avançara doce, transparente e tranquila, sem qualquer prenúncio de desgraça. Havia meses que não chovia e o Verão entrara inclemente pelo Outono adentro, notando‑se a canícula nos caminhos poeirentos e nos campos secos onde não brotava uma erva, não se via um pedaço de verde.
Lisboa acordou mole e pachorrenta e, ainda estremunhada, preparou‑se para a missa. São Roque, Santa Catarina, São Paulo, a Sé de Lisboa, o Loreto, o convento do Carmo, muitas dezenas de outras igrejas, estariam em breve sobrelotadas para o serviço religioso mais importante do dia. O povo ia à missa.
Nobres e burgueses vestiam os seus melhores fatos e destilavam de calor, acotovelando‑se nos templos a deitar por fora, em redor dos quais enxameavam mendigos esfarrapados, cocheiros ocupados com os seus cavalos irrequietos, vendedores de bugigangas e crianças órfãs que dormiam pelas ruas e que, desde bem cedo, eram atraídas pelo toque dos sinos às igrejas onde afluíam as gentes ricas.
Ainda não eram oito horas quando D. Carlota Justina Vasconcelos de Mattos, filha única do conde de Montargil, abriu um olhinho rameloso, esticou um braço fora das cobertas, espreguiçou‑se muito indolente, deixando depois cair o braço na cama, como que hipnotizada a fitar os anjos desenhados no dossel, por cima dela.
Sentiu‑se preguiçosa, capaz de ficar mais uma hora à deriva nas intermitências do sono, mas não, hoje era um dia importante, era preciso reagir. Deitou a mão à mesinha‑de‑cabeceira, agarrou na pequena campainha e agitou‑a com energia, fazendo bater o badalozinho estridente. Logo acudiram a criada Arlete e a ama, dona Consolação. A rapariga abriu a porta do quarto, afastou o grosso reposteiro de veludo pesado, enquanto dona Consolação aguardou atrás com os dedos das mãos entrelaçados à frente do peito como que em oração, muito direita, de queixo erguido, grave no seu vestido fúnebre, um fio ao pescoço e uma grossa cruz de prata. D. Carlota Justina ergueu‑se na cama e ficou sentada a fazer beicinho, exaurida, dir‑se‑ia enferma, ou a chocar um resfriado. Mas não, no auge dos seus 17 anos, era já uma mulher feita e senhora do seu nariz empoado, uma «frança», como se usava chamar às mais requintadas do reino, seguidoras incondicionais da moda francesa. Pois bem, D. Carlota Justina não padecia de nenhuma febre e dona Consolação não fez caso dos modos contrariados da menina, que mais não eram do que a atitude chique que se esperava de uma donzela excessivamente elegante.
Arlete apressou‑se a ajudar a menina a sair do leito, a pôr os chinelos de veludo, a envergar o robe de chambre.
A ama ocupou‑se do petit‑déjeuner, um prato de fruta variada, descascada, cortada em pedacinhos. D. Carlota Justina segurou um pequeno espelho de prata e observou‑se olhos nos olhos, cheia de melancolia.
— E monsieur Marcel? — perguntou, distraída.
— Está a chegar — disse a ama. — Ficou de vir às oito e meia.
— E ainda não são?
— Faltam quinze minutos.
O cabeleireiro chegou pontualmente à hora combinada. Saltou da sua sege de luxo, imobilizada por baixo do pórtico que dava passagem para o jardim, e subiu a escadaria que conduzia ao primeiro andar. Percorreu em passo alegre e saltitante os corredores marmoreados, os sucessivos e imensos salões pintados com frescos, atravessou aquela casa apalaçada onde moravam somente D. Carlota Justina e o paizinho, e um batalhão de criados, naturalmente.
A mãezinha expirara minutos depois do parto, vítima de uma complicação inesperada, uma hemorragia que os médicos não puderam conter. Desde então, nunca mais ninguém vira o conde interessar‑se por outra mulher. Monsieur Marcel instalou‑se na antecâmara do quarto de D. Carlota Justina com todos os seus frasquinhos mágicos de pós coloridos, de perfumes, os papelinhos, os instrumentos para encanudar o cabelo, para armar um penteado de uma altura inacreditável, cheio de laçarotes e flores. D. Carlota Justina veio ter com ele e cumprimentaram‑se com dois beijos no ar, como velhos amigos. O cabeleireiro era um íntimo dela, muito afectado, muito divertido, sempre cheio de mexericos para contar. Sabia todos os amores e todos os escândalos da Corte e não se inibia de os contar, um mimo!
Uma hora passou, enquanto monsieur Marcel trabalhava sem parar, tagarelava sem parar, cheio de espírito, erguendo a sua escultura com a cabeleira de D. Carlota Justina como só ele sabia fazer, como um artista criando a sua obra de arte. Por fim, subiu a um banquinho atrás da cadeira onde ela se sentava protegendo a cara com uma máscara em forma de cone bicudo e deixou cair sobre o seu cabelo uma nuvem de pó branco. E quando a nuvem assentou o artista saltou do banquinho dando gritinhos de entusiasmo e ofereceu‑lhe um espelho de mão para que ela visse como estava linda.
— Liiiinda!! — esganiçou‑se o artista.
D. Carlota Justina, comovida com o resultado, bateu palminhas de contentamento e soltou um riso estridente, quase histérico.
Monsieur Marcel foi‑se, cantarolando palacete fora, radiante por ter deixado a cliente satisfeita, satisfeito consigo mesmo, convicto de que era um génio, não fosse ele o cabeleireiro mais disputado pelas mulheres mais nobres do reino. Sim, que lá ele só servia a fidalguia!» (pp. 9-12)

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