O bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, assinalado no passado dia 16, é o pretexto para relembrar duas belíssimas obras publicadas pela Editora Sistema Solar, deste escritor, romancista, cronista, dramaturgo, biógrafo, crítico, historiador, poeta e tradutor português. Falo-vos de Amor de Perdição (esta edição contém 35 ilustrações a preto e branco da autoria de Ilda David) e A Viúva do Enforcado.
Este livro, cujo êxito se me antolhava mau, quando eu o ia escrevendo, teve uma recepção de primazia sobre todos os seus irmãos.
«Nas Memórias do Cárcere, referindo-me ao romance que novamente se imprime, escrevi estas linhas: “O romance, escrito em seguimento daquele (O Romance de um Homem Rico), foi o Amor de Perdição. Desde menino, ouvia eu contar a triste história de meu tio paterno Simão António Botelho. Minha tia, irmã dele, solicitada por minha curiosidade, estava sempre pronta a repetir o facto aligado à sua mocidade. Lembrou-me naturalmente, na cadeia, muitas vezes, meu tio, que ali deveria estar inscrito no livro das entradas no cárcere e no das saídas para o degredo. Folheei os livros desde os de 1800, e achei a notícia com pouca fadiga, e alvoroços de contentamento, como se em minha alçada estivesse adornar-lhe a memória como recompensa das suas trágicas e afrontosas dores em vida tão breve. Sabia eu que em casa de minha irmã estavam acantoados uns maços de papéis antigos, tendentes a esclarecer a nebulosa história de meu tio. Pedi aos contemporâneos que o conheceram notícias e miudezas, a fim de entrar de consciência naquele trabalho. Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados de minha vida. Tão horrorizada tenho deles a memória, que nunca mais abrirei o Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras, se é que não saiu tolhiço incorrigível da primeira. Não sei se lá digo que meu tio Simão chorava, e menos sei se o leitor chorou com ele. De mim lhe juro que…”
Vão passados quase dois anos, depois que protestei não mais abrir este romance. […] Este livro, cujo êxito se me antolhava mau, quando eu o ia escrevendo, teve uma recepção de primazia sobre todos os seus irmãos. Movia-me à desconfiança o ser ele triste, sem interpolação de risos, sombrio, e rematado por catástrofe de confranger o ânimo dos leitores, que se interessam na boa sorte de uns, e no castigo de outros personagens. Em honra e louvor das pessoas que estimaram o meu livro, confessarei agradavelmente que julguei mal delas. […] O livro agradou como está. Seria desacerto e ingratidão demudar sensivelmente, quer na essência, quer na compostura, o que, tal qual é, foi bem recebido.»[Camilo Castelo Branco, do Prefácio à Segunda Edição. Porto, Setembro de 1863]
— Olha, se eu dava a minha filha a esse Herodes!
Credo! Que vá casar com o diabo que o leve,
Deus me perdoe!«Teresa amava-o ardentemente. Aquele rapaz era, com efeito, o que devera ter sido o artista de Guimarães para que as duas almas se identificassem. António Maria era arrojado nas aspirações e invejava a morte duns heróis revolucionários, cuja história contava à viúva entusiasta.
Dramatizava coisas insignificantes com atitudes trágicas. Declamava com o timbre metálico de pulmões que se ensaiavam para o fôlego comprido das pugnas parlamentares. Sabia o gesto e a palavra atroadora de Desmoulins e Mirabeau. Era um homem antípoda do defunto Guilherme. Não tinha cismas, arroubos, nem enlevos pelo azul dos céus além. O seu amor manifestava-se em convulsões assustadoras, e às vezes ajoelhava-se aos pés de Teresa com a humildade de uma criança, e não ousava beijar-lhe a barra do vestido. Se lhe apertava, porém, a mão, os seus dedos fincavam-se como garra do açor, e o sangue latejava-lhe nas falanges. Dizia que tinha vontade de afogá-la nas suas lágrimas, e morrer. Chamava-lhe a sua redentora, porque já não pensava em estrangular os tiranos da pátria, desde que todo o seu futuro estava no amor ou no des prezo da única dominadora do seu orgulho. Se Teresa um dia lhe desse o seu destino, queria ir com ela para a América inglesa, para o coração do mundo onde pulsa a liberdade humana. Se lá a não encontrassem, iriam procurá-la no deserto; à sombra de uma palmeira fariam uma cabana, e no seio de um areal cavariam a sepultura de ambos. Este homem tinha lido as melhores asneiras de 1829: a Adriana de Brianville e Amélia ou os efeitos da sensibilidade; e conhecia Atalá, traduzido em 1820, e as Aventuras do último abencerragem, em 1828. Possuía literatura bastante para levar a peçonha dos romances ao serralho de Mahmoud II.»
[Camilo Castelo Branco]
Camilo Castelo Branco (1825-1890) foi um dos maiores escritores portugueses do século XIX. Dominou a segunda geração romântica e pode considerar-se como seu maior representante. Publicou volumes de poesia lírica nos moldes da época; poemetos satíricos mais ou menos pessoais; folhetos e amplos volumes de contundentes polémicas; dedicou-se também à crítica e à história literária, com agudo senso do ridículo e de certos factores biográficos; muito versado em problemas genealógicos, em certas miuçalhas eruditas, bibliográficas e anedotas históricas, deixou também vários volumes de investigação e miscelânea; para o teatro produziu dramas históricos e passionais, e comédias de caracteres; no jornalismo, além de folhetins, poesia e crítica literária, produziu ainda, em vários periódicos, um trabalho vasto e indiferenciado de redacção e direcção; traduziu muito; prefaciou e editou numerosas obras; deixou epistolografia vastíssima. No entanto, o género mais importante da sua obra é a novela e o conto, género em que criou algumas obras-primas e com as quais preencheu o melhor de vários volumes.
Alguns dos seus livros: O Bem e o Mal, A Queda dum Anjo, Maria Moisés, Maria da Fonte, Onde Está a Felicidade.
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