quarta-feira, 2 de março de 2022

«Ele e o Outro», de Hermann Hesse

Editora: Dom Quixote
Data de publicação: Fevereiro de 2022
N.º de páginas: 112

Até ter sido galardoado com o Prémio Nobel de Literatura em 1946, Hermann Hesse já tinha escrito a maioria da sua obra. Os seus livros eram muito pouco conhecidos pelos leitores europeus e americanos. Foi só após esta atribuição, a mais prestigiada do meio literário mundial, que o autor alemão viu os seus livros serem difundidos para vários idiomas.
Manuela de Sousa Marques (1924-2015) foi quem traduziu, pela primeira vez, um livro deste autor para português. Estávamos em 1952, quando foi dada à estampa, pela Guimarães Editores, um dos títulos, aparentemente, menos marcantes de Hesse: Ele e o Outro (Klein und Wagner, 1919).
Esta obra, que a Dom Quixote recupera da “obscuridade” (há muitos anos que estava esgotada), mantém, com revisão, a primeira e única tradução. Constatar que Manuela de Sousa Marques, num texto que escreveu em 1987, afirmou «com mágoa, que Hesse não foi ainda descoberto em Portugal e que a hora da sua influência em grande escala ainda não soou para nós».
Após a leitura desta curta narrativa, há uma pergunta que se levanta: porque permaneceu esta obra tanto tempo fora do alcance dos leitores portugueses que têm Hermann Hesse como uma referência indiscutível da Literatura Germânica e Internacional?

Friedrich Klein é um homem perto dos 40 anos conhecido como honesto funcionário; «era tido por culto, estudioso, dado aos livros e às letras.» Há muitos anos que levava uma vida falhada e angustiada: «Não havia dentro de si nada que não sangrasse, que não estivesse podre e doente.» Num dia, revolta-se contra a existência vazia, degradante, que o mundo na sua hipocrisia exige, e abandona a mulher e os filhos. Chegado a um país diferente, as coisas melhoram: «respirar era mais fácil, a vida mais possível, o revólver mais dispensável…» Era possível uma esperança para o protagonista e talvez a sua vida pudesse vir a ser suportável.
Quando conhece uma bailarina, logo sente um desejo profundo por ela. Mas quando Teresina, que o acha esquisito e pergunta quem é ele, Klein responde: «Sou quem está vendo diante de si, nada mais. Não tenho nome, nem título, nem profissão. Tive de abandonar tudo…»
Ao longo da narrativa, Klein vai tendo oscilações de pensamentos sombrios sobre identidade, lutando com demónios internos (Klein não consegue tirar da cabeça um episódio drástico acontecido anos antes, por um homem chamado Wagner).

Ele e o Outro é um drama psicológico cheio de intensidade e complexidade, uma narrativa notável escrita num período de plena maturidade do escritor (nesta altura, a primeira parte de Siddhartha já estava concluída, e estava na feitura de O Último Verão de Klingsor).
Esta história revela muitos paralelismos com a vida do próprio escritor, que ao escrevê-la cumpriu um claro propósito terapêutico, como ele próprio afirmou. Em 1919, este grande escritor e humanista, que já tinha publicado obras como Peter Camenzind e Demian, instalou-se em Itália, após ter deixado a sua esposa (por causa da doença que ela padecia) e três filhos.

Esta obra mantém, na íntegra, o prefácio da primeira edição, da autoria de Delfim Santos (1907-1966), professor universitário que manteve contacto pessoal com Hermann Hesse e que foi por sua iniciativa que Ele e o Outro foi publicado por cá. Por curiosidade: Manuela de Sousa Marques viria a ser sua esposa.
Referir que este prefácio contém um spoiler dantesco, que podia muito bem ter sido omisso desta edição revista.

Excertos
«E assim se realizara o mais radioso desejo da sua juventude, daquela juventude de que perdera e apagara as recordações na longa e árida caminhada que fora a sua vida sem sentido.»

«Nunca, desde a juventude, estivera Klein tão só e tão diretamente abandonado aos seus sentimentos…. Nunca tão exposto aos raios verticais do sol do seu destino. Sempre vivera ocupado com qualquer outra coisa que não ele próprio.»

«Caí do ninho… e agora ou soçobro ou aprendo a voar. O mundo já não me interessa, estou completamente só.»

«Como tinha vivido só, tão só, tanto tempo só! Abismos e infernos chamejantes se tinham aberto entre ele e o mundo.»

«Sofria da angústia, do medo de muitas coisas, da loucura, da polícia, da insónia e também do medo da morte. Mas, ao mesmo tempo, ansiava por tudo aquilo a que tinha medo.»

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