domingo, 9 de agosto de 2020

«Apneia», de Tânia Ganho

Editora: Casa das Letras
Data de publicação: 21-07-2020
N.º de páginas: 696
Todos os anos centenas de mulheres e homens sofrem em silêncio, ao não denunciarem a violência doméstica de que são alvo, seja ela física, psicológica ou sexual. Enquanto nas suas mentes não veem asseguradas as condições necessárias para se libertarem dessas situações opressoras, os anos vão passando e as cicatrizes do corpo e da alma vão-se evidenciando, dando sinais, somatizando-se. Quando existem filhos pelo meio, tudo complica e ganha outra dimensão. Em consequência de divórcios litigiosos, emerge um outro flagelo da sociedade: a alienação parental, que provoca estragos psicológicos profundos nas crianças.
No seu novo romance, a escritora Tânia Ganho (n. 1973) empresta a voz às vítimas de violência doméstica e de abusos sexuais em Portugal, especialmente às «crianças à deriva nos tribunais de família e menores», a quem dedica este seu quinto livro, editado pela Casa das Letras.
Adriana e Alessandro conheceram-se em Itália. Casaram. Tiveram um filho e mudaram-se para Inglaterra. Ele é director financeiro numa multinacional e tem de viajar constantemente pelo mundo; ela é uma artista plástica cujo nome está a adquirir relevo no mundo das artes. Decidem construir de raiz uma casa em Lisboa e assim que esta fica prestes a ser habitável, mudam-se para Portugal. Mas essa moradia com piscina não chega a conhecer a felicidade deste casal. Até porque há muito tempo que a desdita faz parte da vida de Adriana. O homem por quem se apaixonara e deixara-se ficar cega, «lia-lhe os e-mails, as mensagens de telemóvel, entrava-lhe nas redes sociais» (p. 68), ele reduzia-a «até restar apenas o defeito, a imperfeição, o medo.» (p. 103)
Num dia de Setembro de 2009 em que Adriana decide sair de casa e dessa relação tóxica, ele diz que vai tirar-lhe tudo: «o dinheiro, a carreira, a família, o teu filho.» (p. 54) E assim tem início o processo de divórcio e o de guarda partilhada e residência alternada de Edoardo, o filho de ambos, que com apenas seis anos é ouvido, pela primeira vez em tribunal.
Mãe e filho começam assim uma jornada em que dependerão de instituições como o tribunal e o hospital, instituições essas que Adriana comprovará mais adiante, pouco comunicam entre si, devido a mau profissionalismo, burocracias ou simplesmente à inanição do sistema. Passa, assim, a vida em consultas no psicólogo e pedopsiquiatra com o filho, pois este vinha mais agressivo e perturbado da casa do pai: «Para o tribunal, a mudança semanal de hábitos e de modo de vida era uma questão de somenos importância; “as crianças adaptam-se”, insistiam os magistrados.» (p. 204)
Adriana vê no nado - «era uma criatura aquática» - e na pintura escapes, onde pode extravasar os seus medos: «O auto-retrato era um caminho para regressar a si mesma.» Para recuperar energias e esquecer por uns dias que o objectivo do ex-marido não era obter a guarda do filho, mas sim desestabilizá-la financeira e emocionalmente - nem que para isso tivesse que mentir ao filho: «Edoardo se subjugava sempre aos desejos de Alessandro, porque ele o aliciava ou chantageava.» (p. 53) -, a pintora começa a visitar uma ilha, às vezes com Edoardo, por vezes sozinha. Todavia, estes seus subterfúgios não amenizam o estado permanente de stresse profundo com que vive: «As crises de ansiedade foram a maneira de o seu corpo a obrigar a tomar consciência disso.» (p. 536)
Uma das partes da história que causa mais comoção e transtorno na leitura, é a de um incidente, e de toda a série de acontecimentos que advêm desse episódio. «O dia em que deixou de sentir tristeza pelo fim do seu casamento.» (p. 512)
Até onde será capaz de ir esta mãe corajosa para proteger o filho das lavagens cerebrais que o seu ex-marido, um pai negligente e pérfido, que alicia Edoardo a ver filmes violentos e de teor sexual, que critica constantemente a ex-companheira enquanto pessoa, mãe e profissional, quando ele está à sua guarda?
Através de uma escrita elegante e desenvolta, com vocabulário rico, Tânia Ganho traz à superfície uma discussão necessária sobre a impotência e inércia do sistema português em dar resposta a estes processos complexos e delicados, onde deveria ser salvaguardo, sempre, «o superior interesse da criança». Como afirmou o Prof.º Dr.º Carlos Alberto Poiares (Licenciado em Direito e Doutor em Psicologia) na sessão de apresentação do livro: «Enquanto não tivermos avaliações psicológicas forenses obrigatórias [a cada um dos pais] nos tribunais, andamos a brincar.»
Este romance que se sucede a A Mulher-Casa (Porto Editora, 2012) evidencia a mesma escritora de índole sensível, que aqui inclui novamente apontamentos sobre arte, pintura e literatura, mostrando-se ser uma observadora nata das relações humanas e dos acontecimentos recentes que toldaram o mundo. Nesta nova obra que Tânia Ganho nos oferece, cuja feitura durou sete anos, é inevitável, para o leitor que acompanha o seu percurso literário, notar amadurecimento na sua escrita. A história de Apneia foi pensada e escrita de forma cirúrgica; cada acontecimento é dado a conhecer ao leitor na página certa.
Tânia Ganho é uma escritora talentosa que ganha o sustento como tradutora, mas (se não estivéssemos em Portugal) deveria escrever a tempo inteiro e ver os seus livros traduzidos para outros idiomas, principalmente este Apneia, que tem um grande potencial para chegar a um público vasto, pelos temas emergentes que de forma extraordinária aborda e atira para cima da mesa para reflexão.
Esta história intensa e perturbadora – às vezes temos de fazer uma pausa na leitura e suster a respiração por breves momentos – tem também toda a viabilidade para ser transposta para o cinema; todos os ambientes onde ocorre a narrativa são plausíveis de serem filmados, principalmente a ilha onde a protagonista da história procura refúgio.
Apneia revela que a autora fez um primoroso trabalho de pesquisa sobre os diversos assuntos trazidos à tona, ao longo da trama. Referir que esta obra foi inspirada em experiências reais de várias mulheres que partilharam com a autora de A Lucidez do Amor (Porto Editora, 2010) as suas histórias de violência doméstica e de divórcios litigiosos, no Ministério Público, no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, entre outras instituições.

Excertos
«Enroscavam-se nos braços um do outro e Adriana tinha vontade de lhe falar de futuro, mas não o fazia. Existiam naquele farol, naquela ilha. Não sabia se teriam lugar no mundo lá fora. Não queria pensar nisso enquanto ali estava. Cabiam naquela cama estreita, no tempo presente.» (p. 220)


«A vida não nos prepara, enquanto filhos, para encontrarmos o vazio onde deveria existir a empatia, o amor, no coração de um pai ou de uma mãe.» (p. 512)

«Quantas mulheres já estiveram em esquadras da polícia a dizer que têm medo, que os filhos estão em perigo, e as mandaram para casa “descansar e pensar positivo”? E, no dia, seguinte, estavam nas capas dos jornais?» (p. 577)

8 comentários:

tania ganho disse...

Muito obrigada, Miguel, por mais esta leitura tão generosa.

Alexandra Guimarães disse...

Tenho lido opiniões muito positivas sobre a autora e sobre este livro. Espero ter a oportunidade de ler esta obra que me despertou imensa curiosidade.

Ana disse...

Tema recorrente e nem por isso a melhorar, os silêncios são profundos!!

Inês disse...

Estou muito curiosa com este livro, parece-me uma boa leitura com um tema forte.

Cláudia Nascimento disse...

Estou com muita vontade de ler este livro, as críticas são boas e infelizmente é um tema tão atual...

Joana disse...

Nunca li nada desta autora, mas gostava de ler.

patricia dias disse...

Quero tanto ler este livro:)

susana disse...

Quero muito ler este livro