sábado, 15 de novembro de 2025

Entre as novidades de Novembro está o romance vencedor do Prémio Femina de há um século

Joana D'Arc, da autoria do romancista francês Joseph Delteil (1894-1978) e Mervyn, do poeta francês Conde de Lautréamont (1846-1870) são os títulos de ficção mais recentes da Sistema Solar, ambos com tradução portuguesa assinada por Aníbal Fernandes.
Relembrar que em Outubro a editora lançou Desejo e o Massagista Negro, de Tennessee Williams.


Se Les Cinq Sens
, de 1924, ainda conseguiu o favor de um relativo entusiasmo, o Joana d’Arc de 1925 (que biografava com excessivos lados profanos uma santa recente, só quatro anos antes canonizada, desde logo distinguido por altas vozes femininas do Prémio Femina) excitou com muito cruéis adjectivos os surrealistas, acompanhados nas suas diatribes pelos que funcionavam intelectualmente num plano oposto, cheio de moral e religiosidade, os que viam nesta Joana literária uma vontade de fazê-la descer, com vulgaridades terrenas, da altura dos seus altares. 

Delteil, numa entrevista a Jacques Molénat, a tudo isto se referiu com perplexidade: No momento da batalha de Joana d’Arc tive contra mim a grande burguesia, Le Temps com o seu crítico Paul Souday, o catolicismo oficial com La Croix a dar-me, pelo seu director Jean Guiraud, todas as cutiladas que podia dar… e ainda um terceiro bandido chamado André Breton, que acusou o livro de ser «uma enorme trampa». Imagine a minha situação. Fiquei entre dois fogos, atacado pela direita e pela esquerda, por cima e por baixo, sem perceber exactamente porquê. Sentia-me num mundo de armadilhas e alçapões. E esta razão talvez tenha sido o que me fez fugir de todos eles. 
Nesta batalha anti-delteil devem também reter-se as observações feitas por Donald Pelayo: «Pouco depois, no meio das hagiografias com gosto a incenso e a água benta, esta Joana não tardou a ser considerada incendiária. À Joana crepuscular, para freiras e madres superioras, Delteil opunha a sua Joana robusta e sensual, feita de carne e acção, uma Joana de um sol do meio-dia.»

Marcado por esta fuga às normas, Ducasse escolhia no Paris dos intelectuais uma lateralidade impenetrável e interdita à curiosidade dos poucos que desejavam ver, em corpo, o homem tão fora dos princípios da literatura e dos costumes. Tem-se no entanto admitido que talvez tenha havido neste apagamento público a excepção que o fez privar de perto com o movimento político da Comuna, embora só haja para isso um argumento débil, o de existir em L’Insurgé, o romance de Jules Vallès, uma personagem dessa agitação popular chamada Ducasse e que se ajusta de forma surpreendente às características pessoais do escritor dos Cantos de Maldoror.
Nos seus Cantos destaca-se pelo desvio à estrutura geral o Sexto, tentativa de pôr o ponto final àqueles hiperbolismos enfáticos com um «romance», chamemos-lhe assim, (hoje vou fabricar um pequeno romance de trinta páginas, é confessado num preâmbulo pelo próprio autor), oito capítulos autónomos, visitados por um Mervyn loiro — como os outros adolescentes com passagens rápidas nos Cantos anteriores — que se entrega indefeso a uma intriga equívoca, perturbada na sua forma literária pelas audácias de estilo, pelas rasteiras da lógica, caras a Lautréamont, e a sugerir-se como paródia sofisticada aos romances de Eugène Sue, de Ponson du Terrail e outros, nessa época a singrarem num auge de popularidade.
Mervyn surge tão singular dentro dos Cantos, que podemos conceder-lhe o direito de libertar-se das amarras que o prendem aos outros cinco textos da saga maldororiana; e assim, isolado e a contar-se com imagens barrocas e ênfases hiperbólicas, ganha também o direito de ser vítima da atracção ambígua e punitiva de um Maldoror atemporal e ubíquo (desdobrado, para a execução da sua sentença, pela cega obediência do louco Aghone) que o destrói e com sublimidade o castiga sem saber, ao que parece, atribuir-lhe mais culpas do que vê-lo a rondar, loiro e adolescente, nas suas imediações. 

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